ALTA ROTAÇÃO

Cuba, nua e crua (muito além dos carros clássicos)

Cuba não é para amadores, como se diz quando um tema é muito complicado. É, disparado, o país mais complexo que conheci. Cuba dá um verdadeiro nó na cabeça de quem se propõe a entendê-la sem a paixão cega dos revolucionários e sem a convicção cretina dos neoliberais.

Vim para Cuba para satisfazer um desejo de três décadas e para ver com meus próprios olhos o que se passa na Havana real. Por isso, resisti ao máximo à tentação de ficar apenas três ou quatro dias em Havana e o restante na paradisíaca Varadero e/ou na tentadora Cidade do Panamá, onde fica o hub da Copa Airlines. Descrevo, portanto, o que vi, senti e ouvi.

Ninguém que não tenha um mínimo de simpatia pela causa da Revolução deve vir a Cuba. Havana é de tirar o fôlego. É seguramente a cidade mais linda que já vi, em termos arquitetônicos. É como se o centro histórico de uma Paraty, uma Santos ou uma Cartagena fosse multiplicado e ampliado dezenas de vezes.

Junte a isso a paisagem natural, a luz do sol em suas diferentes posições, os carros clássicos dos anos 50, a musicalidade incomparável, a generosidade, simpatia e beleza dos cubanos e das cubanas e o seu coração se aquece. Para além disso, o ritmo vagaroso do tempo, o trânsito sociável, as ruas sem buracos, a ausência de buzinas e britadeiras, a inexistência de outdoors instigando o consumo desenfreado, as icônicas imagens do Che e a barulhenta alegria das crianças nas atividades físicas da escola constroem uma Havana de sonhos para a esquerda utópica.

Mas algo tira o fôlego logo de cara e não é uma boa sensação. A deterioração extrema de 80% dos edifícios e casas de Havana dão à cidade um aspecto fantasmagórico, assustador. Nas entranhas de Havana as cores desbotadas por sete décadas da Revolução ganham contornos sombrios em prédios semidestruídos, interiores escuros, escadas desafiadoras, calçadas estreitas, ruas imundas, com lixo acumulado e total ausência de cuidados, que só existem portas adentro, pois cubanos e cubanas vivem em ambientes internos limpos e dignos. Aprenderam a cuidar do essencial e deixaram certas aparências para as regiões mais ricas da capital e por conta do destino. Doloroso destino.

Mas, apesar desse lado fantasmagórico e decepcionante desta Havana suja e deteriorada, como se tivesse saído de um bombardeio, a sensação de segurança é total. Há enorme respeito sobre o que é do outro e, por mais que a pobreza impere sobre a estética capitalista dos turistas, não existe o menor perigo de um roubo, de uma abordagem violenta, de um revólver na cara, de uma bala perdida, como ocorre em qualquer cidade brasileira. Talvez aí esteja um pouco do milagre que faz a alegria brotar nos corações e no flanar da gente cubana enquanto uma sincera decepção dos mais velhos e um desesperado desejo de partir dos mais jovens, para experimentar outra vida, permanecem submissos às conquistas da Revolução.

Toda a população cubana é alfabetizada e há uma dezena de níveis escolares gratuitos que vigoram até a universidade e pós graduação. Todas as grávidas passam a gestação inteira com licença maternidade remunerada e depois mais três meses (não remunerados se a mãe for casada) para os primeiros cuidados com o bebê. Todas as crianças até 6 anos recebem uma pequena ração de leite em pó (200 g por mês) e não há filas para creche. Nas escolas de tempo integral as crianças são alimentadas com arroz e caldo de pollo (frango).

Há creches e escolas particulares, se os pais quiserem. Quem pode manda reforço alimentar. As crianças são magras, mas a grande maioria parece bem nutrida. Não se entopem de bolachas e danoninhos, pois quase não existe isso aqui.

Os salários são muito baixos e o governo socialista não esquece de ninguém, porém a pandemia destruiu o poder de compra pela quarta vez. As outras foram quando os Estados Unidos bloquearam e destruíram a economia do país, quando a União Soviética virou pó e quando a Venezuela quebrou. Temas econômicos complexos levaram o governo a acabar com o CUC (moeda pesada) e os cubanos perderam a paridade com o dólar e com o euro. Um médico ganha uns 6.000 a 8.000 pesos cubanos (MN, Moneda Nacional) assim como alguns funcionários de carreira. É muito pouco, mas foi assim que Cuba conseguiu dar saúde e educação para todos.

Taxistas estão autorizados a receber somente em dólar ou euro, por isso têm maior poder de compra do que outros trabalhadores. Parece bizarro que um  chofer de praça ganhe mais do que um médico. Entretanto, a população é saudável e recebe uma cesta básica que inclui um… charuto! Faltam medicamentos, mas não existe um drama sanitário diário como no Brasil e nos EUA. Muitos taxistas investem em peças que deixam seus velhos carros estadunidenses um brinco. Os turistas amam.

As pessoas podem ter casas e negócios próprios e também podem sair do país, se quiserem. Entretanto, para conseguir viajar é preciso ter pelo menos 70.000 pesos cubanos na conta bancária (cerca de 389 dólares) e casa própria. Qualquer viagem de táxi em Havana custa de 20 a 30 dólares; os passeios de conversíveis saem por 40 dólares.

É interessante notar que uma classe de pessoas mais ricas está se formando, enquanto os mais pobres precisam da ajuda estatal. Não há hábitos pequeno burgueses, como se entupir de dívidas no cartão de crédito para comprar tudo que o capitalismo produz e que, teoricamente, deixa as pessoas “mais felizes”. Até porque existe escassez de tudo. De gasolina a papel, passando por produtos farmacêuticos e de higiene pessoal, como absorventes femininos e fraldas descartáveis.

Em compensação, não há agrotóxicos nas frutas, verduras e legumes. As carnes parecem livres de anabolizanres injetados em galinhas, vacas e porcos para engordarem no ritmo frenético do capitalismo. Há restaurantes e tendas (lojas) com preços bem mais baixos para os cubanos. O conceito “pegue e pague” é raro; normalmente, pede-se no balcão. E há também alguns pedintes nas ruas, mas não vi ninguém revirando lixo das ruas como em São Paulo, Londrina e Guarujá.

A população mais jovem sonha em viver fora do país, pois tem ótima formação escolar e/ou técnica, mas a vida em Cuba não oferece oportunidades profissionais. Quem tem aspirações pessoais sofre e sonha com alguma chance de transformar seu talento em uma vida próspera, com acesso ao consumo do mundo capitalista.

O povo cubano é muito inteligente e usa internet, YouTube e redes sociais como nós. Estão no Facebook, no Instagram e no TikTok como nós. Fazem sátiras críticas ao governo em suas redes, mas a imprensa tradicional é controlada e censurada. Não há liberdade de imprensa no nível que conhecemos. Não existe a figura clássica de um censor nas redações, mas a mídia não se atreve a apontar os erros da administração ou a cogitar uma sociedade capitalista.

O governo está abrindo o país para investimentos estrangeiros. Ontem vi um programa na televisão, AgroCuba, mostrando os primeiros resultados. As empresas estrangeiras desse setor podem vir ao país, investir em Cuba e remeter lucros ao exterior sem nenhuma taxa. É um movimento e tanto! Parece que Cuba pretende adotar algumas táticas comerciais chinesas, porém não tem um grande mercado interno consumidor, o que dificulta as coisas. O governo está muito mais próximo da Rússia (embora ela seja capitalista) do que da China.

Muitos problemas desapareceriam se os Estados Unidos encerrassem o criminoso bloqueio econômico que impede os próprios cubanos de negociar com seu povo e com seu país. Como Fidel disse, Cuba é um país pequeno e pobre. Produz até petróleo (em pequena escala) e resiste bravamente a séculos de exploração de Espanha e dos Estados Unidos. Foi usado pela União Soviética na Guerra Fria e ia bem, mas condições externas nunca permitiram que a Revolução tivesse duas décadas seguidas para ampliar as conquistas sociais, por isso o país vive uma crise atrás da outra.

Cuba é mais do que Havana. Mas é a velha capital, com mais de 500 anos, que traduz sua alma. É uma luta diária. O centro histórico de Habana Vieja já foi reformado, mas ainda há muito a ser feito. Enquanto isso, nas tardes de domingo, o Paseo del Prado, que liga o Parque Central ao Malecón, segue sendo a síntese dessa cidade.

O piso impecável abriga centenas de jovens jogando beisebol, andando de patins, fazendo brincadeiras com o corpo (longe dos tablets das crianças ricas), casais namoram, adultos caminham e jogam conversa fora, idosos observam e carros dos anos 50 se misturam com um ou outro Audi e Mercedes atuais, sob a silenciosa cumplicidade de uma arquitetura mágica e deslumbrante, mas com as cores desbotadas, as paredes deterioradas e um aspecto cinzento que assusta quem está acostumado com fachadas modernas e conservadas.

É fácil amar Cuba. Mas também é fácil odiar. Seus detratores são muitos e se alimentam dos aspectos negativos da Revolução. “Vai pra Cuba” é a sentença preferida dos arautos do “vença por você mesmo apesar de ter nascido preto, pobre e sem casa própria”. Afinal, acham que o sucesso de alguém só pode ser medido pela acumulação de capital financeiro e acham que o fracasso daquele um só pode ser culpa dele mesmo, pois não soube jogar o jogo da meritocracia (branca, europeia e capitalista).

Mal sabem que Cuba não é só um país, é uma forma de resistência contra tudo isso que está aí, mesmo sendo imperfeita, fechada e contraditória. (Havana, 2 de Maio de 2023)

  • Sérgio Quintanilha é jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela ECA-USP