Tuim
O dia amanheceu estranho, silêncio no quintal. O corpinho da ave endurecido, com ambas as patas apontadas para o céu.
Lembro ainda daquele canário belga. Dourado. Ou canário do reino como diziam. Bico pérola e um leque de penas quase vermelhas coroando os olhos. Canários assim vivem até vinte anos, mas aquele contava com vinte e cinco. Insistia. Na gaiola forrada de alpiste. Bebia água e sobrevivia. Crias? Isso não lembro, foram tantas ninhadas. Todo mês de agosto.
– Uns belguinhas, dizia a vizinha com olhar pidonho por cima do muro.
– Coitados! Vendidos pelo mundo a preço de filhotes.
Cânticos? Há muito não cantava, esquecera talvez. Pela vida solitária. Pelo silêncio ao redor. Aprendeu a viver de bico calado.
Até que um dia, por empréstimo ou abandono, alguém a trouxe. A fêmea, essa sim, genuína canária da terra, tez marrom salpicada de amarelo nas asas.
– Muito bonita!
Então o Tuim voltou a cantar. Horas e horas. Desafios, trinados, gorjeios e outras invenções dos uirapurus.
Aumentamos a porção de alpiste:
– Pois o desejo consome.
Aumentamos a dose diária de água:
– A paixão exaure.
Quase permitimos que ele voasse.
– O amor é livre.
E ela correspondia. Ouvia. O velhinho que cantava, cantava e cantava. Até que:
Aquele dia amanheceu estranho.
Música incidental: Noturno em dó sustenido menor | Frederic Chopin
AMARELLO SOUÑD
Piraju/SP