Paredes
“O tempo devora, o homem mais ainda”
(Victor Hugo. In: O Corcunda de Notre Dame)
Mais uma campanha política acabou sem que nenhum candidato pronunciasse qualquer palavra ou projeto para a questão da Sorocabana, que abrange temas importantes: falta de moradia para todos, ocupação de imóveis por famílias carentes e preservação do patrimônio arquitetônico/ histórico da cidade.
Os galpões do complexo Sorocabana abrigaram mais do que sacas de café desde sua construção até hoje. As paredes de tijolos de barro testemunharam histórias de vida, cenas pitorescas do cotidiano dos moradores da Estação e dos funcionários da antiga Estrada de Ferro que já não existe mais.
Ao longo do século, as paredes viram os vestidões das moças se transformarem em tops e shortinhos e viram os ternos dos rapazes serem substituídos por camisetas de corres berrantes estampadas com enormes nomes de marcas estrangeiras.
Há menos de 100 anos, os galpões da Sorocabana presenciavam as festas que aconteciam nos dias de pagamento dos funcionários: um a um, todos vestidos de terno, era chamado à frente da chefia para receber o cheque pelos serviços prestados no mês. Para a criançada era uma atração. Outra atração era quando chegavam as encomendas de São Paulo: embutidos, latas de biscoitos e coisas que não existiam nas vendas da Piraju dos anos 50.
Além do prédio principal da Estrada de Ferro (um pequeno castelo na entrada da cidade) e dos galpões, o complexo projetado por Ramos de Azevedo incluía belas casas geminadas para servir de residência às famílias dos funcionários – conferentes de armazém, “saqueiros”, maquinistas e todo o “staff” da época.
De lá pra cá, o mundo mudou. Não há mais conferentes de armazém de café, empregados não moram mais em casas fornecidas pela empresa, o pagamento cai na conta, excluindo a necessidade de receber o cheque das mãos da chefia, a Estrada de Ferro Sorocabana não existe mais e até mesmo as latas de biscoito estão fora de moda. Mas as paredes resistem. Nem todas, é verdade.
As casas geminadas que resistiram ao tempo foram ocupadas por novas famílias e assim grandes janelas de madeira foram sendo trocadas por “blindex” ou “sasasaki”; pisos de cerâmica por azulejos e o cenário, que por si só narrava histórias do passado, vai se calando frente à voz do presente.
Em “O Corcunda de Notre Dame” (1831), manifesto em defesa da arquitetura medieval que ainda restava em Paris no tempo de Victor Hugo, o autor escreveu que o gênero humano tem dois livros: a alvenaria e a imprensa. A bíblia de pedra e a bíblia de papel. Segundo ele, é preciso reler o passado nessas páginas de mármore. Ou, no caso de Piraju, de tijolos de barro. Mas, para que essa leitura ocorra, é necessário preservar os livros – ou melhor – as paredes.