ISSN 2359-5191

04/02/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 8 - Arte e Cultura - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Santo Daime e Umbanda se aproximam por uso de bebida sacramental
Pesquisa mostra como o daime tem papel importante nas práticas de incorporação de entidades nas duas religiões
Participante se prepara antes do início da gira no Reino do Sol. Alvaro Russo, 2013. Acervo Pessoal.

Práticas da umbanda e do santo daime se aproximam pelo uso da bebida sacramental daime em rituais afro-brasileiros, chamados de giras com daime, conforme analisado pelo pesquisador Alvaro Antônio Russo Júnior em seu mestrado sobre os diálogos entre esses sistemas religiosos que foi apresentado ao departamento de Antropologia da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Nas giras com daime essa conversa entre umbanda e santo daime é mais intensa e evidente, explica Russo, cujo objeto de estudo foram os rituais em três terreiros de umbanda em São Paulo e em uma igreja de santo daime.

Esses rituais, dos quais podem participar centenas de pessoas, usam a bebida para atingir o astral, uma espécie de mundo espiritual de onde emana a força espiritual. O objetivo, segundo o pesquisador, é se colocar no dualismo entre dois mundos, o astral e o terreno, buscando um duplo pertencimento. "Essas práticas buscam o estabelecimento de uma zona de transformação nesse 'entre-mundos'", diz.

"Trata-se de uma experiência que não é situada nem no mundo terreno e tampouco no mundo astral, mas que ocorre simultaneamente nos dois mundos", continua, assim, a incorporação de entidades, que podem ser espíritos, se dá nessa zona de transformação, um lugar privilegiado para a "produção de conhecimento sobre si e sobre o outro". Esse espaço é chamado por Russo de a "boca da mata ontológica", inspiração para o título de seu mestrado, que representa esse espaço entre a aldeia e a mata, sendo os dois lugares ao mesmo tempo.

A incorporação de entidades é parte importante desses rituais com daime, mas ela se dá de formas diferentes nos terreiros de umbanda e na igreja do santo daime, dois sistemas religiosos que se constituíram de forma diversa e possuem características bastante diferentes.

Na umbanda, religião afro-brasileira que cultua os orixás, santos católicos e entidades (espíritos de mortos), a incorporação dessas entidades é um dos pilares centrais e está fortemente ligada a outro pilar, o da caridade, segundo o qual espíritos menos evoluídos na hierarquia estabelecida devem baixar no terreiro. No entanto, o uso do daime como um facilitador para esses rituais de incorporação é relativamente recente. Segundo Russo, o primeiro terreiro no Sudeste a abraçar rituais de santo daime foi o da Mãe Gamo de Oxum no Rio de Janeiro, no início da década de 1990.

Já no santo daime, fundada pelo mestre Irineu na periferia de Rio Branco, capital do Acre, a incorporação de entidades não é um pilar estabelecido e é caracterizada por uma contenção da expressão corporal. Diferente da umbanda, as entidades durante a incorporação não usavam a palavra como ferramente de expressão. No final da década de 1990, daimistas, interessados em introduzir nos rituais uma presença da umbanda, fundaram a igreja de santo daime Reino do Sol. A partir dessa influência, há uma flexibilização, uma abertura, da expressão corporal durante a incorporação para entrar contato com o astral.

Em ambos os rituais, um dos objetivos é desenvolver o chamado mediunico, a "mente unidade", que é a capacidade da pessoa de receber essa entidade e trabalhar como receptáculo. A incorporação, explica Russo, é ditada pelo tambor que funciona como a "lei dos dois mundos" e comanda as práticas das entidades e das pessoas nesse mundo pela sua batida.

Transformação profunda

Durante o trabalho de campo, o pesquisador optou por participar dos rituais e esteve sob o efeito do daime. Essa foi, justamente, uma das suas maiores dificuldades: fazer as anotações de campo durante as experiências. "Isso exigiu certo desenvolvido e aprendizado, não consegui da noite pro dia. E, mesmo quando desenvolvi algum controle, ele era muito tênue", conta.

Por outro lado, participar dos rituais também significou um grande ensinamento pessoal para Russo. "Não é a toa que o daime é chamada de bebida professora, eu aprendi muita coisa. É uma forma de se olhar de fora, mas ao mesmo tempo de só olhar para o que está dentro de você", disse o pesquisador, que já tivera experiências anteriores com a bebida antes de iniciar seu processo acadêmico.

Para Russo, as giras de daime são experiências intensas que provocam transformações profundas. De acordo com ele, são comuns relatos de morte, "destruição do ego" e renascimento. "É como olhar por cima do muro, o que não necessariamente é bom, porque você pode ter surpresas que você escondia até de si mesmo. É uma experiência intensa, mas sempre no eixo da transformação", explica.

Academicamente, o pesquisador não vê seu trabalho como produtor de um grande deslocamento teórico na antropologia. Para ele, o ganho está em gerar interesse sobre essas religiões, que sofrem "um preconceito histórico, seja por conta do uso de psicotrópicos, como o santo daime, seja por conta das incorporações da umbanda, que já foram reprimidas".

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