No território corrediço e intervalar das teotopias, um encontro utópico entre paisagens simbólicas, verbo sagrado e poesia demiúrgica poderia abrir extensas linhas de mútua fecundação entre literatura e teologia. É o que se apresenta na hipótese que norteia este ensaio interpretativo do conto “Sequência” (1962), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Partimos do pressuposto hermenêutico de que essa narrativa se ambienta no entrelugar de convergência de práticas culturais oriundas de diferentes tradições religiosas, sobretudo do judaísmo e cristianismo, para traçarmos possíveis linhas de interpretação, no que se refere às relações de seres humanos com suas divindades e o além, mas também com os demais entes da Natureza. O percurso dos signos religiosos espelha-se metaforicamente, em palimpsesto, por sob outro percurso — agora para dentro do sertão, do país e de suas conflitivas paisagens culturais. Por esses caminhos concomitantes e sobrepostos, o leitor é conduzido para muito além da escrita, é levado para a urgente necessidade de decidir no decurso da própria indecidibilidade dos signos, da própria indizibilidade de fenômenos como vida e morte, essa sutil matéria com que se levanta, feito uma esfinge, o irrecusável Mistério da existência, na figura de uma mistagógica “novilha pitanga”.
Em 1996, em uma de suas raras entrevistas, Guimarães Rosa enfatiza a importância da decifração de “A menina de lá” como fonte para iluminar o restante de sua obra. A crítica rosiana menciona, amiúde, o empréstimo transculturado que Rosa faz de textos poéticos, filosóficos e religiosos pertencentes ao patrimônio da humanidade. Esse artigo parte da premissa de que “A menina de lá” está escrito sob forma de um polissêmico koan, no qual se medita sobre o significado da morte em culturas asiáticas. Busca-se rastrear a convergência, por meio de desdobramentos especulares, entre a protagonista Nhinhinha e esse outro personagem de ficção narrativa, qual seja, João Guimarães Rosa. Para tanto, parte-se da história e das características próprias ao gênero literário “koan” e de aspectos da tradição budista, para interpretar um feixe de traços religiosos que simbolicamente marcam os demais personagens. Em última instância, este estudo destina-se a desentranhar elementos para interpretação do último capítulo aberto em koan por Rosa: sua enigmática morte ocorrida três dias depois da posse na Academia Brasileira de Letras.
Este artigo propõe-se a analisar a construção de personagens de ficção biográfica em torno da figura pública do escritor João Guimarães Rosa, com base na confrontação de três matérias jornalísticas versando sobre a morte enigmática do romancista, ocorrida em 19 de novembro de 1967. Cabe ressaltar que, em 2017, celebram-se 50 anos desse evento marcante da cultura brasileira, ainda por se decifrar em todo seu alcance e significação. Por esse viés, o presente estudo parte igualmente do fato de que Grande Sertão: Veredas é qualificado, por seu próprio autor, como uma “autobiografia irracional”: trata-se, de maneira inédita na história da literatura, de contar uma vida (e uma morte), para em seguida vivê-la. Por esse viés, a análise centra-se na dimensão narrativa do texto jornalístico, no plano das imbricações entre universo fático e universo ficcional (MOTTA, 2005). Com esteio em um corpus constituído por três artigos publicados no O Globo, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, discorre-se sobre os índices semântico-lexicais e as condicionantes editoriais (CHARAUDEAU, 2010) que induzem a consolidação de diferentes relatos proto-biográficos em torno da imagem de Guimarães Rosa, romancista que, por sua vez, é artífice e demiurgo consciente de suas próprias personas (no sentido junguiano do termo), ou suas personagens de autoficção biográfica – categoria poética que solicita o aprofundamento de reflexões teórico-críticas. No presente caso, a notícia biográfica constrói-se com apoio em recursos poéticos, por meio de um discurso em que, articulando-se mutuamente, convergem literatura e jornalismo. Interroga-se, por fim, o papel do jornalismo enquanto construtor de personagens, em sua dimensão de representações sociais, como no caso da imagem de pessoas públicas, assim como as formas indiciais de indução ficcional que certos sujeitos podem exercer sobre os jornalistas e seus veículos, como forma de ampliar e consolidar a difusão de uma obra literária por meio de um per
O presente artigo dedica-se ao estudo do léxico, imaginário e estética da Umbanda em "O recado do Morro" (1956), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Com apoio em breve panorama histórico e antropológico, este ensaio busca identificar imagens, imaginários, termos e expressões que, nesse conto, apontam indicial e ludicamente para as relações poéticas e ontológicas de Guimarães Rosa com a cultura e as práticas da espiritualidade afro-brasileira. Para tanto, utilizamos as ferramentas teóricas da hermenêutica, da filologia, da estilística e dos estudos do imaginário. O vocabulário empregado por Rosa, nesse conto, converge com aquele que define práticas e características da Umbanda, como se demonstra no glossário circunstanciado e comentado. Nossa conclusão é voluntariamente aberta e aponta para a necessidade de ampliação das pesquisas no entrecampo da cultura afro-ameríndia e da literatura rosiana.
Guimarães Rosa qualifica seu romance Grande sertão: veredas como uma "autobiografia irracional" ? enquanto a crítica literária faz ouvidos moucos a tal explícito protocolo de leitura. O herói Riobaldo é um bardo que conclui um pacto faustiano para derrotar Hermógenes (o signo arbitrário) e receber Otacília (o prêmio literário): o preço é a perda de Diadorim (a alma). Paralelamente, numa esfera próxima à oratura holográfica, Guimarães Rosa afirma escrever em "estado de possessão", adia a posse na Academia Brasileira de Letras durante quatro anos, morre misteriosamente três dias após a cerimônia. Enigma ou enredo? Por meio de índices factuais e de uma forma inédita na história da literatura universal, o romancista entretece detalhadamente uma autobiografia não tipografável, alheia e avessa à impressão gráfica -- um texto em exclusiva forma de oratura --, com o objetivo de transformar em lenda viva sua própria existência e subtrair-se à finita condição dos seres humanos (e à limitada natureza do texto impresso). Neste trabalho, discutimos as relações entre crítica e vanguardas literárias, por um lado, e oratura autobiográfica ficcional em João Guimarães Rosa, pelo viés oposto, no tocante a seu palimpséstico processo de automitificação poética ? estranhamente ignorado pelo conjunto da crítica.
Guimarães Rosa qualifie d’« autobiographie irrationnelle » son roman Grande Sertão : Veredas (1956) – le héros Riobaldo est un barde/poète qui se soumet à un pacte faustien pour prendre le dessus sur Hermogène (le signe arbitraire) et recevoir enfin Otacilia (le prix littéraire) ; toutefois, cela se conclut au prix de la perte de Diadorim (Deodoron, cadeau de Dieu : l’âme). Parallèlement, dans un registre poétique proche de l’oraliture holographique, Guimarães Rosa affirme avoir écrit son chef-d’oeuvre en état de possession. Et alors qu’il ajourne, par superstition avouée et revendiquée, son entrée à l’Académie brésilienne des lettres pendant quatre ans, il meurt mystérieusement trois jours après la cérémonie. Énigme ou mise en scène ? Par le biais d’indices factuels plantés avec soin sur les sentiers interprétatifs, et suivant à la ligne un scénario tout à fait inédit dans l’histoire universelle de la littérature, le romancier compose en menus détails une autobiographie irréductible à une version qui serait définitivement encadrée par l’impression graphique : cette autobiographie ne se conçoit que dans l’espace poétique de l’oraliture (dans ses manifestations sociales collectives et grégaires, au-delà de l’univers de la lettre imprimée). Dans le but de transformer en légende vivante sa propre existence et afin de se soustraire à l’incomplétude hasardeuse de la condition humaine (ainsi qu’aux limitations réductrices qui marquent l’avènement du texte écrit), Rosa raconte une vie (la sienne), sous prétexte d’une « mort annoncée », par l’intermédiaire d’une textualité qui s’accomplit exclusivement dans l’imaginaire de ses lecteurs.
A recepção literária é uma questão cultural e lingüística. Ora, a palavra “Arte” aparece em 65 ocasiões no meta-romance criptográfico Grande Sertão: Veredas. A crítica nacional parece ignorar tais protocolos de leitura. As duas traduções francesas e a versão italiana do romance, na esteira da crítica brasileira, ou suprimem sistematicamente a palavra, ou transpõem sentidos equivocados, enquanto o texto espanhol opta por transposições literais.
Em março de 1956, João Guimarães Rosa, antes mesmo de lançar Grande sertão: veredas (sua “autobiografia irracional”), anuncia em jornal o projeto de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), apesar de sua condição de escritor praticamente inédito, por então. Foi a primeira entre três tentativas, todas marcadas por intenso desgaste emocional: somente sete anos mais tarde, em 1963, Rosa será finalmente eleito, quase à unanimidade. Paradoxalmente, passa a inexplicavelmente adiar a cerimônia de posse e vem a falecer exatamente três dias depois do evento postergado por quatro longos anos. Nos jornais do dia seguinte, chega-se até mesmo a anunciar que ele teria previsto a própria morte. Com base nesse enredo biopoético, buscamos “desentramar”, ao longo deste artigo, os indícios de uma narrativa metapoética em cujas linhas Rosa poderia ter eventualmente ficcionalizado sua relação com a poesia, com a planejada eleição, com a posse fatal e com a rivalidade própria aos membros da ABL, tal como se entrevê em “Desenredo”, de Tutameia – Terceiras estórias (1967). O presente ensaio percorre esse célebre prosoema em busca de elementos de reflexão sobre a seguinte questão genealógica: Quais são os limites entre ficção e biografia, entre narrativa poética e prosoema, entre estória e história, entre interpretação crítica e transcriação poética, entre imortalidade e pervivência, no caso de um autor que leva ao paroxismo derradeiro a noção de “autobiografia irracional”? Em outras palavras: Em sua genealogia, caberia ler “Desenredo” como um irreverente texto metapoético?
Este artigo parte de um pressuposto hipotético que jamais poderá se confirmar e menos ainda se infirmar, que jamais poderá se resolver ou se dissolver em toda sua plenitude, e por aí mesmo alcançará sua pervivência (na perspectiva do Fortleben benjaminiano) e imortalidade, por meio de múltiplas tentativas de interpretação-tradução. Trata-se de um koan protobiográfico legado por Guimarães Rosa a seus leitores, que abarca o conjunto de sua obra e alcança sua morte enigmática, previamente anunciada em vários de seus escritos e em múltiplas declarações sábia e parcimoniosamente lançadas ao vento por meio de eficazes passadores de vozes. Para explicitar os elementos desse koan, e com apoio no último e conclusivo verso lançado por Rosa (“as pessoas não morrem, ficam encantadas”), o conto “Conversa de bois” será percorrido em busca de eventuais pistas de convergência temática, que prenunciariam o desenredo de Grande sertão: veredas e a morte-ressurreição de Guimarães, ocorrida exatamente três dias após a posse na Academia Brasileira de Letras. Buscamos responder à seguinte questão, no que se refere à pervivência: o que se pode inferir das alterações incidentes entre a versão original do conto (constante em Sezão, 1937) e a efetivamente publicada em Sagarana (1946)?
Tal como na epopeia de Rama (herói de Ramayana), Augusto Matraga cumpre um período de banimento na mata, conduzido por um casal de “sadhus” (ascetas que se dedicam à vida espiritual) e um sacerdote. Em seu “ashram” (local ermo e selvático, destinado a práticas espirituais), Augusto aproxima-se dos desmunidos e dedica-se a meditação e preces, precisamente como Rama. Ao termo de sua ascese, Augusto confronta-se voluntariamente com seu duplo, Joãozinho Bem-Bem; ao final de uma coreografia marcial dedicada a Shiva, entrega-se à Bela Morte e alcança redenção e renome. O episódio espelha a missão para a qual Rama é predestinado pelos deuses: liquidar definitivamente Ravana, o demônio de dez cabeças. Em leitura contrastiva com textos de diversas origens, o conto “A hora e vez de Augusto Matraga” será percorrido em busca de eventuais pistas que permitam também perscrutar o sentido da morte de Guimarães Rosa, anunciada previamente em sua “autobiografia irracional” e amplamente inspirada no topos homérico da Bela Morte (καλòς θάνατος).