Neste artigo, elaboramos um estudo comparativo entre os contos homônimos “O espelho” de Machado de Assis e de Guimarães Rosa, trazendo para a discussão, a partir da análise, algumas considerações sobre as intrincadas visões de mundo desses autores, postas em confronto a convite do próprio Guimarães Rosa. Tal convite é percebido não só pela escolha do título de sua estória e por alusões imagéticas e textuais à obra precedente, como também devido ao emprego de técnicas narrativas orientadas para a construção de um personagem-narrador interessado em propor um ponto de vista alternativo sobre dois eixos temáticos do conto machadiano: a fragmentação do eu e sua relação com o outro.
Em março de 1956, João Guimarães Rosa, antes mesmo de lançar Grande sertão: veredas (sua “autobiografia irracional”), anuncia em jornal o projeto de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), apesar de sua condição de escritor praticamente inédito, por então. Foi a primeira entre três tentativas, todas marcadas por intenso desgaste emocional: somente sete anos mais tarde, em 1963, Rosa será finalmente eleito, quase à unanimidade. Paradoxalmente, passa a inexplicavelmente adiar a cerimônia de posse e vem a falecer exatamente três dias depois do evento postergado por quatro longos anos. Nos jornais do dia seguinte, chega-se até mesmo a anunciar que ele teria previsto a própria morte. Com base nesse enredo biopoético, buscamos “desentramar”, ao longo deste artigo, os indícios de uma narrativa metapoética em cujas linhas Rosa poderia ter eventualmente ficcionalizado sua relação com a poesia, com a planejada eleição, com a posse fatal e com a rivalidade própria aos membros da ABL, tal como se entrevê em “Desenredo”, de Tutameia – Terceiras estórias (1967). O presente ensaio percorre esse célebre prosoema em busca de elementos de reflexão sobre a seguinte questão genealógica: Quais são os limites entre ficção e biografia, entre narrativa poética e prosoema, entre estória e história, entre interpretação crítica e transcriação poética, entre imortalidade e pervivência, no caso de um autor que leva ao paroxismo derradeiro a noção de “autobiografia irracional”? Em outras palavras: Em sua genealogia, caberia ler “Desenredo” como um irreverente texto metapoético?
Quase desconhecidos pela crítica, os diários de Guimarães Rosa constituem uma visão particular do fictício e do autobiográfico em sua obra. Há três diários entre os manuscritos do escritor, mas neste artigo será focalizado apenas o diário escrito em Paris, por ser o que mais recupera reflexões sobre a escrita de si e sobre o fazer literário. Expondo um interesse do escritor por diários de outros escritores, a investigação sobre mecanismos de narração de si e da relação dessa autocontemplação com o mundo estendeu-se para crônicas e para um dos prefácios de seu último livro, o que também será explorado neste artigo, quando veremos a incorporação do debate sobre literatura engajada a partir da escrita íntima.