Autor de contos, novelas e do romance Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa é reconhecido pela engenhosidade de suas narrativas e por um estilo que seria expressão de uma personalidade artística ímpar na literatura brasileira. O poder que suas narrativas têm de surpreender os leitores em suas expectativas convencionais se manifesta de modo singular no último livro do escritor. Neste artigo, pretendemos apresentar e analisar o modo como Tutaméia: terceiras estórias está sistematicamente voltado a desautomatizar o leitor das convenções na apreensão da verossimilhança e como suas estórias e prefácios encenam aquilo que, segundo Bakhtin, seria a característica do romanesco enquanto gênero: o “criticismo”.
O artigo pretende evidenciar o protagonismo que as elaborações poético-ficcionais desempenham nas novelas “O recado do morro” e “Uma estória de amor”, de Corpo de baile. Descrevemos as ambivalências e os impasses próprios das consciências dos personagens protagonistas, Pedro Orósio e Manuelzão, e, em seguida, o confronto entre a angústia decorrente dos impasses e as irrupções e percursos das estórias, canções e poemas, bem como de seus lugares de origem e seus destinatários, como forma de compreender a incidência incontornável dessas elaborações poético-ficcionais sobre os desfechos das novelas.
Este artigo apresenta um estudo do conto “A volta do marido pródigo”, de Guimarães Rosa, com o foco na análise do personagem. Estabelecemos relações entre o anti-herói rosiano, o herói bíblico e o pícaro europeu. Para desenvolver tal análise, utilizamos a crítica de Roberto Schwarz (2012) e Antonio Candido (1993), bem como o pensamento do filósofo romeno Constantin Noica (2011), ao ressaltar que a recusa ou a carência do indivíduo perante o Geral (a lei, a ordem) caracteriza-se como uma doença do espírito contemporâneo. O presente estudo tem como objetivo contrapor as três categorias de heróis (o malandro, o bíblico e o pícaro), revelando suas semelhanças e divergências. Nosso método de pesquisa segue a crítica integrativa de Antonio Candido (1993), pois investiga a narrativa rosiana sob diferentes ângulos, observando o aspecto social e ontológico do personagem Lalino Salãthiel. O resultado deste estudo nos revela que o texto de Rosa apresenta uma sátira da narrativa bíblica ao mesmo tempo em que transcende o pícaro europeu. A categoria do malandro, como bem aponta Candido (1993), é uma peculiaridade do anti-herói brasileiro. Concluímos, assim, que a singularidade da malandragem de Lalino reforça a realização de sua individualidade e comprova que o seu espírito pode padecer de acatolia, ou seja, a recusa do Geral e a afirmação do individual, conforme nos esclarece Noica em sua obra As seis doenças do espírito contemporâneo.
Neste ensaio, busca-se empreender uma leitura analítico-interpretativa de “Meu tio o Iauaretê”, o extraordinário conto incluído no livro Estas estórias, de João Guimarães Rosa, publicado postumamente em 1969, de modo a mostrar como o encontro entre o narrador-protagonista e o forasteiro que chega ao seu rancho, no meio do sertão, não poderia ter tido um resultado diferente da eliminação do caçador de onças, índio mestiço, além de misturado em diversos outros aspectos, e que parecia prestes a metamorfosear-se em onça. A civilização representada pelo branco adventício parece incapaz de tolerar o misturado e muito menos aquele que se apresenta como o seu outro radical. Nesse sentido, a narrativa figuraria, entre outras coisas, o modo como o homem branco, muito melhor aparelhado tecnologicamente do que o nativo, foi responsável pela destruição da cultura indígena.
O estudo que se segue é uma tentativa de analisar Primeiras estórias (1962) a partir da hipótese de que existe, na escrita de Guimarães Rosa, uma provocação meditativa que se dá por meio da presença de um elemento causador de estranhamento, ostraniênie. Para auxiliar a investigação, foram usados como base os estudos de Viktor Shklovsky (1976) e Carlo Guinzburg (2001) sobre o estranhamento em cotejo com algumas noções manifestas em cartas e entrevistas de Guimarães Rosa em que o escritor fala sobre seu processo de criação. Utilizam-se ainda, a fim de aprofundar a questão da meditação e do autoconhecimento nas Primeiras estórias, algumas referências vindas do cânone budista, uma vez que os sutras e koans são exemplos antigos do uso de estranhamento com o objetivo de prender a atenção do ouvinte ou leitor e de fazê-lo meditar sobre um tema. Os resultados mostram que uso do estranhamento é eficaz como modo de provocação meditativa e que a meditação é de fato algo relevante para o processo de composição e recepção da obra de Guimarães Rosa.
O ensaio pretende explanar sobre a travessia de Riobaldo em Grande sertão: veredas, como modelar do herói problemático na concepção proposta por Lukács, em A Teoria do Romance, através do estudo do episódio do (suposto) pacto demoníaco empreendido pelo protagonista da obra de Guimarães Rosa, nas Veredas-Mortas, feito que conduz a trajetória do herói por entre dúvidas e questionamentos, inerentes ao modelo lukacsiano. O estudo da obra rosiana será realizado por meio de análise comparativa com o pacto demoníaco realizado por Fausto, na obra homônima de Goethe, e de trechos de outras obras derivadas do tema do pacto demoníaco, como Dr. Fausto, de Thomas Mann e O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov.
Este artigo propõe uma leitura do pacto diabólico no Grande sertão: veredas a partir de alguns dos numerosos “causos” que perpassam a narrativa, cuja constante são as “trocas de destino” ou “conversões existenciais” que se dão de forma assimétrica: um indivíduo de caráter ou condição social dominante imputa os reveses de sua sina a um subordinado. As ligações entre as estórias paralelas e o macrocosmo do livro vão na esteira de estudos de Todorov e de críticos que se ocuparam do tema no romance de Guimarães Rosa, como Davi Arrigucci Jr, Kathrin Rosenfield, Marcus Mazzari etc. Também são feitas considerações acerca da confiabilidade do relato riobaldiano e do seu viés “metaficcional”, a partir dos estudos literários de Jacques Rancière.
O presente artigo analisa o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e a República, de Platão, para promover um diálogo entre a “cidade da religião” e a kallipolis, a “bela cidade”, ambas discursivamente construídas pelos personagens Riobaldo, protagonista do romance de Rosa, e Sócrates, figura central do diálogo platônico; com o intuito de refletir sobre a necessidade urgente de um “novo homem” e uma “nova sociedade”, expressas por essas duas importantes obras. Ambas revelam uma tensão dramática: o sertão e a polis encontram-se em estado de confusão e injustiça e é preciso imaginar um outro lugar em que seja possível para o homem cuidar de sua alma.
O artigo se propõe a discutir a natureza erótica em Grande Sertão: Veredas estabelecendo como ponto de partida as noções de Eros apresentadas n’O banquete, de Platão. Sabendo-se que o discurso erótico no diálogo platônico é múltiplo, buscou-se neste estudo demonstrar que a natureza indômita de Eros agencia a narrativa de Rosa fundindo o plano da guerra exterior, as batalhas pelo poder no sertão, com o plano da guerra interior, o embate entre aquilo que a tradição expõe como interdito e o desejo que quer transgredir. Se Diadorim nutre o Eros que o impulsiona à guerra, Riobaldo é alimentado por um Eros que só pode consumar o desejado à luz da imaginação ou da pulsão de ver. O conceito freudiano de pulsão, ou impulso erótico, sustenta a tese de que a saga rosiana assume um caráter de prosa moderna justamente porque aciona categorias psicológicas no monólogo-diálogo de Riobaldo que permitem ao leitor confrontar o dentro e o fora, o eu e o outro, o narrado e o narrável. De natureza interdisciplinar, o estudo parte da filosofia de Platão e aproxima-se da psicanálise, com as categorias desenvolvidas por Freud (2010, 2013), tais como pulsão de vida e de morte e pulsão de olhar.
Este artigo examina as obras de João Guimarães Rosa, Mário de Andrade e João Simões Lopes Neto com o objetivo de verificar em que medida pontos de contato identificados na ficção desses autores promovem rearranjos na série literária brasileira. O estudo parte da noção de tradição literária, tal qual formulada por T. S. Eliot e Jorge Luis Borges, e, em seguida, procura mapear a ocorrência de ressonâncias das principais obras de Mário de Andrade e Simões Lopes Neto na literatura de Guimarães Rosa. Assim procedendo, pretende averiguar como a obra de Guimarães Rosa ressignifica os textos de Mário de Andrade e Simões Lopes Neto, renovando sua legibilidade e modificando sua posição no campo literário.
Este artigo parte de um pressuposto hipotético que jamais poderá se confirmar e menos ainda se infirmar, que jamais poderá se resolver ou se dissolver em toda sua plenitude, e por aí mesmo alcançará sua pervivência (na perspectiva do Fortleben benjaminiano) e imortalidade, por meio de múltiplas tentativas de interpretação-tradução. Trata-se de um koan protobiográfico legado por Guimarães Rosa a seus leitores, que abarca o conjunto de sua obra e alcança sua morte enigmática, previamente anunciada em vários de seus escritos e em múltiplas declarações sábia e parcimoniosamente lançadas ao vento por meio de eficazes passadores de vozes. Para explicitar os elementos desse koan, e com apoio no último e conclusivo verso lançado por Rosa (“as pessoas não morrem, ficam encantadas”), o conto “Conversa de bois” será percorrido em busca de eventuais pistas de convergência temática, que prenunciariam o desenredo de Grande sertão: veredas e a morte-ressurreição de Guimarães, ocorrida exatamente três dias após a posse na Academia Brasileira de Letras. Buscamos responder à seguinte questão, no que se refere à pervivência: o que se pode inferir das alterações incidentes entre a versão original do conto (constante em Sezão, 1937) e a efetivamente publicada em Sagarana (1946)?
O objetivo do presente trabalho é refletir sobre a releitura dramática que a diretora Bia Lessa fez da obra Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Com apoio de pressupostos teóricos de pensadores como Peter Brook, Bertold Brecht e Roland Barthes, a intenção é examinar a encenação do romance a partir do texto dramatúrgico (escrita cênica) construído pela própria diretora. Com vasta experiência em adaptações para o teatro de obras literárias canônicas (O homem sem qualidades, de Robert Musil; Os possessos, de Dostoievski; e muitas outras), Bia Lessa coloca em cena diferentes linguagens, tais como a expressão corporal trabalhada no limite e uma arquitetura cênica surpreendente. Assim, o sertão rosiano salta das páginas para o palco, eclodindo em pura teatralidade.
O objetivo deste artigo é estudar as narrativas de Guimarães Rosa como construção de uma linguagem poética que abre novas perspectivas ao pensamento, distanciando-se dos parâmetros da racionalidade ocidental. Como estratégia analítica, desenvolve-se um paralelo entre a estória rosiana do menino Miguilim e o relato autobiográfico do africanista Amadou Hampâté Bâ, com atenção para os capítulos referentes a seus tempos de criança. Nas duas narrativas, observa-se a conjugação de aspectos sobreviventes de culturas orais arcaicas com a peculiaridade do ponto de vista infantil para o delineamento de modos alternativos de conhecer o mundo. Destaca-se a proximidade entre tais modos de conhecimento e a cunhagem peculiar de conceitos empregados por antropólogos e filósofos contemporâneos que se desviam da epistemologia hegemônica. Para ampliar o campo de debate, consideram-se, ainda, brevemente, os diários e memórias de Carolina Maria de Jesus, escritora descendente de africanos, semialfabetizada mas prolífica e potente. Nesse percurso, procura-se destacar a dimensão investigativo-crítica da forma narrativa.
Este trabalho tem como intuito discutir o papel das quadras populares presentes no livro Sagarana, de Guimarães Rosa, e refletir a respeito das canções do álbum Remanso de rio largo, de Celso Adolfo. O CD foi criado a partir de cantigas e narrativas do livro. No âmbito literário e musical, os textos ligam-se à vida cotidiana, à memória coletiva, ao imaginário popular, a experiências partilhadas. Revelam, em sua simplicidade, a sabedoria, a sutileza e a força lírica que embasam a expressão artística sertaneja. Ideias de herança, inacabamento e reinvenção contribuem para pensarmos nas criações que transitam entre a prosa, o verso e a canção, ultrapassando limiares específicos dos gêneros artístico-literários.