Este artigo propõe-se a analisar a construção de personagens de ficção biográfica em torno da figura pública do escritor João Guimarães Rosa, com base na confrontação de três matérias jornalísticas versando sobre a morte enigmática do romancista, ocorrida em 19 de novembro de 1967. Cabe ressaltar que, em 2017, celebram-se 50 anos desse evento marcante da cultura brasileira, ainda por se decifrar em todo seu alcance e significação. Por esse viés, o presente estudo parte igualmente do fato de que Grande Sertão: Veredas é qualificado, por seu próprio autor, como uma “autobiografia irracional”: trata-se, de maneira inédita na história da literatura, de contar uma vida (e uma morte), para em seguida vivê-la. Por esse viés, a análise centra-se na dimensão narrativa do texto jornalístico, no plano das imbricações entre universo fático e universo ficcional (MOTTA, 2005). Com esteio em um corpus constituído por três artigos publicados no O Globo, O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, discorre-se sobre os índices semântico-lexicais e as condicionantes editoriais (CHARAUDEAU, 2010) que induzem a consolidação de diferentes relatos proto-biográficos em torno da imagem de Guimarães Rosa, romancista que, por sua vez, é artífice e demiurgo consciente de suas próprias personas (no sentido junguiano do termo), ou suas personagens de autoficção biográfica – categoria poética que solicita o aprofundamento de reflexões teórico-críticas. No presente caso, a notícia biográfica constrói-se com apoio em recursos poéticos, por meio de um discurso em que, articulando-se mutuamente, convergem literatura e jornalismo. Interroga-se, por fim, o papel do jornalismo enquanto construtor de personagens, em sua dimensão de representações sociais, como no caso da imagem de pessoas públicas, assim como as formas indiciais de indução ficcional que certos sujeitos podem exercer sobre os jornalistas e seus veículos, como forma de ampliar e consolidar a difusão de uma obra literária por meio de um per
Em março de 1956, João Guimarães Rosa, antes mesmo de lançar Grande sertão: veredas (sua “autobiografia irracional”), anuncia em jornal o projeto de ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), apesar de sua condição de escritor praticamente inédito, por então. Foi a primeira entre três tentativas, todas marcadas por intenso desgaste emocional: somente sete anos mais tarde, em 1963, Rosa será finalmente eleito, quase à unanimidade. Paradoxalmente, passa a inexplicavelmente adiar a cerimônia de posse e vem a falecer exatamente três dias depois do evento postergado por quatro longos anos. Nos jornais do dia seguinte, chega-se até mesmo a anunciar que ele teria previsto a própria morte. Com base nesse enredo biopoético, buscamos “desentramar”, ao longo deste artigo, os indícios de uma narrativa metapoética em cujas linhas Rosa poderia ter eventualmente ficcionalizado sua relação com a poesia, com a planejada eleição, com a posse fatal e com a rivalidade própria aos membros da ABL, tal como se entrevê em “Desenredo”, de Tutameia – Terceiras estórias (1967). O presente ensaio percorre esse célebre prosoema em busca de elementos de reflexão sobre a seguinte questão genealógica: Quais são os limites entre ficção e biografia, entre narrativa poética e prosoema, entre estória e história, entre interpretação crítica e transcriação poética, entre imortalidade e pervivência, no caso de um autor que leva ao paroxismo derradeiro a noção de “autobiografia irracional”? Em outras palavras: Em sua genealogia, caberia ler “Desenredo” como um irreverente texto metapoético?
No território corrediço e intervalar das teotopias, um encontro utópico entre paisagens simbólicas, verbo sagrado e poesia demiúrgica poderia abrir extensas linhas de mútua fecundação entre literatura e teologia. É o que se apresenta na hipótese que norteia este ensaio interpretativo do conto “Sequência” (1962), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Partimos do pressuposto hermenêutico de que essa narrativa se ambienta no entrelugar de convergência de práticas culturais oriundas de diferentes tradições religiosas, sobretudo do judaísmo e cristianismo, para traçarmos possíveis linhas de interpretação, no que se refere às relações de seres humanos com suas divindades e o além, mas também com os demais entes da Natureza. O percurso dos signos religiosos espelha-se metaforicamente, em palimpsesto, por sob outro percurso — agora para dentro do sertão, do país e de suas conflitivas paisagens culturais. Por esses caminhos concomitantes e sobrepostos, o leitor é conduzido para muito além da escrita, é levado para a urgente necessidade de decidir no decurso da própria indecidibilidade dos signos, da própria indizibilidade de fenômenos como vida e morte, essa sutil matéria com que se levanta, feito uma esfinge, o irrecusável Mistério da existência, na figura de uma mistagógica “novilha pitanga”.
Grande Sertão: Veredas apresenta-se como um "almanaque grosso, de logogrifos e
charadas", ou uma "autobiografia irracional", conforme orientação de Rosa. No texto e sobre o
paratexto, espalham-se enigmáticos signos especulares que remetem a uma poesia
profundamente autorreferenciada. Por meio da decodificação de tais signos, busca-se lançar
alguma luz sobre a enigmática e prematura morte do romancista, previamente anunciada em
sua “autobiografia irracional” e ocorrida apenas três dias após a posse na Academia Brasileira
de Letras, um evento estranhamente adiado durante quatro longos anos.