Haroldo de Campos é um raro inventor. Sua lírica, sua prosa experimental, bem como seu trabalho como tradutor e sua incansável atividade ensaística, cuja qualidade não é só rara no ambiente intelectual nosso e da América Latina, revelam-nos seu olhar arguto para com as luminescências da linguagem. Este artigo se limita a mostrar o que Haroldo extraía de uma narrativa curta de Guimarães Rosa, “Meu tio o Iauaretê”, a partir do processo metamórfico observado no processo de construção mimética da linguagem, a que eu chamo de mímesis da produção. Se a estória cria a cena da representação, a ênfase no posicionamento da palavra presentifica a narrativa.
A partir das ideias de Oswald de Andrade sobre antropofagia (Manifesto Antropófago, 1928), que rivalizando com o bom selvagem de Rousseau revitaliza a noção do canibal insubmisso, irreverente e zombeteiro, se inaugura na tradição brasileira artística e acadêmica a noção de devoração do outro como metáfora epistemológica da tradução entre culturas. Tradução antropofágica ou antropofagia tradutória como encontro, experiência de alteridade, mas também como devoração criativa – algumas vezes debochada – mas, sobretudo, como transculturação. Experimentos lingüísticos, literários e ensaios de cunho teórico fazem eco a estas ideias. Este artigo debruça-se sobre o pensamento do escritor João Guimarães Rosa, do filósofo e ensaísta tcheco Vilém Flusser e do poeta e tradutor Haroldo de Campos, sublinhando as suas intercessões e também as suas singularidades, a respeito da linguagem e dos processos tradutores.
O objetivo do artigo é discutir os pressupostos teóricos de duas interpretações referenciais do conto rosiano “Meu tio o iauaretê”: a de Haroldo de Campos (“A linguagem do iauaretê”, com primeira publicação em 1962) e a de Walnice Galvão (“O impossível retorno”, com primeira publicação em 1975). Nesse sentido, realizamos primeiramente uma síntese detalhada do conto e dos dois ensaios para, na sequência, examinar e discutir os pressupostos das interpretações.
O poema A máquina do mundo repensada, de Haroldo de Campos, é um espaço
dialógico, marcado por multíplices convergências. Neste artigo, procuraremos
discutir os diálogos estabelecidos com aspectos da obra de Guimarães Rosa,
cuja presença no texto parece delinear uma parte da jornada empreendida pelo
eu-poético, simulacro do próprio Haroldo de Campos, em busca de sua própria
origem. Ao romper fronteiras diacrônicas, Haroldo traz à luz os labirintos e as
veredas, (re)criando, nos moldes borgianos, Guimarães Rosa, seu precursor.
Após as repercussivas transformações dos campos investigativos das ciências humanas ocorridas mais intensa e explicitamente a partir da segunda metade do século XX, e da qual resultou a colocação do conceito de “multiplicidade” no eixo das reflexões epistemológicas, quaisquer tentativas de acionar um modo de organização múltiplo passaram a ser vistas com máxima desconfiança, já que ao denunciar a arbitrariedade da fixação de um centro regulador em sistemas discursivos e propor uma investigação das estratégias de afirmação e manutenção desses sistemas arbitrários, a leitura predominante das emergentes teorias do múltiplo tendeu a associar o próprio conceito de organização a um potencial instrumento de corrupção, ou um mero conjunto de estratagemas de poder. Daí uma das principais questões que norteiam a contemporaneidade é examinar a possibilidade de se organizar o múltiplo sem que o modo de organização composto venha a se tornar um instrumento de dominação a ser manipulado pelos grupos que detenham as formações de saber, isto é, o poder. Impulsionados por tal reflexão-chave do pensamento sobre a organização descentrada do múltiplo na atual episteme de passagem, este trabalho se debruçará sobre cinco conceitos ou linhas de força (“relação”, “paradoxo”, “sistema”, “estrutura” e “processo”) cujo pormenorizado exame nos permitirá refletir sobre o modo como o pensamento tendeu a ser condicionado dualmente e para onde apontam os ímpetos de reconfiguração da forma hegemonizada. A fim de visualizarmos um outro modo de organização (harmonia) desprendido da dualidade, destacaremos, ao longo de todos os capítulos, os mais diversos aspectos organizacionais de Finnegans Wake, Grande sertão: veredas e Galáxias, na medida em que o modo como esses textos se organizam corresponde ao redimensionamento das linhas de força enfocadas. Ao adentramos a dinâmica funcional de Finnegans Wake, Grande sertão: veredas e Galáxias, veremos a passagem de um modo de cada sistema se ver (arbitrariedade) para um modo de conjuntamente nos ouvir (diálogo intersistêmico), donde a reconfiguração do pensamento poder ser vista sumariamente como a substituição da arbitrariedade/violência instalada no centro da dualidade por um eixo dialógico propulsor de outras estratégias que combatem as reduções e homogeneizações duais, ao passo que sustentam e fortalecem o diálogo no comando de um pensar processológico ou polifônico no qual a linguagem do processo se cria – redimensiona-se – com base em um diálogo descentrado entre suas múltiplas perspectivas moventes.