Os manuscritos atestam um modo de memória e um processo criativo que dizem muito de um momento cultural. Simultaneamente memória social e mecanismo mental aqui se conjugam. O geneticista busca o fio complexo que liga a memória social à individual, no arranjo peculiar de que o manuscrito dá indícios; e os elementos esparsos que compõem a imprevisível lógica do manuscrito. Assim, os manuscritos permitem acompanham a lógica de composição; o ato de criar, concernindo o texto literário; do silêncio inicial ao ritmo que a escritura persegue, entre rasuras, hesitações, variantes e retomadas, A aposta do geneticista é a recolha de elementos que permitam ver o texto em ação -- o manuscrito -- a partir da detecção das descontinuidades do processo de escritura. Este processo criativo pode bem ser explicitado nos manuscritos de Graciliano Ramos, de Gustave Flaubert ou de Guimarães Rosa. O presente artigo busca mostrar o quanto o estudo dos manuscritos acrescentam à compreensão do texto final.
A originalidade e a especificidade da obra de J. G. Rosa residem em sua capacidade de dialogar com culturas e formas de expressão muito diversas. Esse diálogo não nivela as diferenças sociais e políticas, religiosas e nacionais, estéticas e éticas, porém lhes confere tensão dramática e permite vê-las em perspectivas inusitadas. Analisaremos alguns desses eixos a partir da análise de "O Espelho", conto que visa, para além do diálogo com Machado de Assis, uma reflexão sobre o realismo e o idealismo na literatura. Rosa inscreve sutilmente sua reflexão poética na tradição de Flaubert e Dostoiévski, de Goethe e Musil.