Os manuscritos atestam um modo de memória e um processo criativo que dizem muito de um momento cultural. Simultaneamente memória social e mecanismo mental aqui se conjugam. O geneticista busca o fio complexo que liga a memória social à individual, no arranjo peculiar de que o manuscrito dá indícios; e os elementos esparsos que compõem a imprevisível lógica do manuscrito. Assim, os manuscritos permitem acompanham a lógica de composição; o ato de criar, concernindo o texto literário; do silêncio inicial ao ritmo que a escritura persegue, entre rasuras, hesitações, variantes e retomadas, A aposta do geneticista é a recolha de elementos que permitam ver o texto em ação -- o manuscrito -- a partir da detecção das descontinuidades do processo de escritura. Este processo criativo pode bem ser explicitado nos manuscritos de Graciliano Ramos, de Gustave Flaubert ou de Guimarães Rosa. O presente artigo busca mostrar o quanto o estudo dos manuscritos acrescentam à compreensão do texto final.
Este estudo é parte de um trabalho de maior fôlego que se preocupa com o processo de criação literária de Guimarães Rosa. A leitura de manuscritos provenientes do arquivo do autor, que se encontra no IEB/USP, iluminou caminhos de leitura que apontaram o escritor montes-clarense Hermes de Paula como parte do material genético que deu vida e substância a pelo menos duas obras de Rosa: Tutaméia e Estas Estórias.
Este ensaio discute a relação entre a crítica genética e a biografia, a partir do exame dos bastidores da criação, das experiências vividas pelos autores ligadas à produção literária e existencial. A intenção de reunir esses dois polos permite expandir o registro documental dos autores como tentativa de recuperar estágios pré-textuais e estágios pré-vivenciais.
Teorias críticas dos últimos anos contribuíram para o gradativo apagamento do interesse pelas pesquisas em fontes primárias, ao ser valorizado o texto na sua integridade estética, sem o interesse pelos bastidores da criação. É significativo o retorno da crítica em direção à figura do autor que, na pesquisa dos acervos, reaparece com seu traço e resíduo, sua marca autoral. Um esboço de biografia intelectual emana desses papéis, ao serem incorporados ao texto em processo. Os bastidores da criação, as experiências vividas pelos autores ligadas à produção literária e existencial, constituem lugares ainda desconhecidos pela crítica, e que deverão ser levados ao conhecimento público. A crítica genética, responsável pela elucidação da gênese da escrita, participa ainda do aparato biográfico, considerando ser importante processar o cotejo entre manuscrito e texto definitivo dos autores, ao lado da trajetória literária do escritor, sua relação com os instrumentos de escrita, assim como do lugar escolhido para exercer seu oficio.
Tutaméia Terceiras Estórias é a obra de Guimarães Rosa que mais dá mostras da preocupação do escritor com a materialidade do livro e com os processos de apreensão da leitura. O recurso mais explorado para isso foi o uso excessivo do paratexto, que inscreve um espaço intermediário entre o livro e o leitor, sugerindo a ele que reflita sobre o tempo da produção literária. Seguindo essas pistas sobre a prática da escrita, propomos neste estudo a reflexão sobre os procedimentos de composição do manuscrito literário e seu espelhamento em problemas narrativos propostos ao leitor nos textos Desenredo e Sobre a escova e a dúvida.