Em “Conversa de bois”, oitavo conto de Sagarana, de Guimarães Rosa, percebe-se a ocorrência do fenômeno do duplo: uma instabilidade do Eu que acarreta no surgimento de uma representação corpórea com as características inversas de um personagem. O Outro de Tiãozinho surge, gradativamente, ao longo da narrativa, na figura dos bois que puxam a carroça de Agenor Soronho. O objetivo deste artigo é investigar como ocorre esse processo e analisar as etapas que culminam no duplo. O amparo bibliográfico buscado é oriundo dos Estudos Literários, com autores como Antonio Candido (1989), Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2017), Walnice Nogueira Galvão (2008), Ana Maria Lisboa de Mello (2000), Mônica Meyer (2008), Otto Rank (2013), David Roas (2014), Clément Rosset (1976) e Irene Gilberto Simões (1998).
Embora tenham vivido em contextos diferentes — um, aquém, outro, além-mar –, João Guimarães Rosa (1908-1967) e Aquilino Ribeiro (1885-1963) podem ser aproximados por certos pontos de contato perceptíveis em suas obras, quando as examinamos com detida atenção. É possível observar analogias e, ao mesmo tempo, discrepâncias a partir de um olhar lançado sobre o estilo dos dois autores e sobre algumas de suas narrativas. É inegável que ambos trabalharam de forma autêntica com o regionalismo, a linguagem e a imaginação. Nesse sentido, este breve estudo objetiva contribuir, ainda que minimamente, para a ampliação do diálogo entre as obras dos escritores supracitados, apontando convergências entre elas. Para tanto, sob um viés comparatista, colocamos em confronto os contos “À hora de vésperas”, publicado em Jardim das tormentas (1913), obra de estreia do escritor português, e “Conversa de bois”, de Sagarana (1946), primeiro livro de contos do escritor brasileiro. Tocamos, inicialmente, de modo breve, na questão regionalista e analisamos, em seguida, as narrativas em epígrafe, focalizando os animais que nelas comparecem, em certos momentos, como verdadeiros protagonistas. Compreendemos que esse protagonismo manifesta-se, notadamente, pelo recurso da personificação e pelos diálogos que os animais travam entre si, em ambos os textos confrontados.
Centro de Letras e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Letras.
A presente dissertação tem como objetivo analisar a arquitetura de “Conversa de Bois”, oitava narrativa do livro Sagarana (1946), de João Guimarães Rosa (1908-1967). Essa narrativa apresenta-se como resultante de um conjunto de atuantes que propiciam ao narrador-erudito material para a feitura do conto. Há, pois, nesta diferentes níveis. O primeiro deles, nível extradiegético, diz respeito à feitura da narrativa. Aí se situam os narradores-autores (fictícios): o narrador erudito não-nomeado, que estrutura o conto; Manuel Timborna, narrador-oral ou rapsodo, que contou a estória ao narrador-erudito; a irara, testemunha ocular e auditiva da viagem de Agenor Soronho e Tiãozinho, que, tendo caído prisioneira de Manuel Timborna, só foi libertada mediante o relato minucioso da viagem a seu capturador. No segundo, nível diegético, ou seja, o da estória em si, estão Tiãozinho e Agenor Soronho, os oito bois do carro, a irara, João Bala e os cavaleiros. Por fim, no terceiro nível, hipodiegético, aquele no qual um personagem da diegese assume a narração de outra estória, encontram-se as outras estórias presentes em “Conversa de bois”, entre elas, a do boi Rodapião e a do boi Carinhoso. Tendo em vista a presença de tais níveis, buscamos, nesta dissertação, (1) descrever cada um deles, (2) oferecer a sua funcionalidade e (3) destacar algumas possíveis conexões entre um nível e outro. Para isso, a obra Discurso da narrativa, de Gérard Genette ofereceu-nos a teoria-base para a objetivada leitura do conto rosiano. Os resultados da pesquisa evidenciam que ao “desmontar” a narrativa em camadas nos aproximamos da compreensão do todo.
O objetivo deste trabalho, num primeiro momento, foi extrair das 65 cartas que João Guimarães Rosa remeteu à sua tradutora para o inglês, Harriet de Onís, durante a tradução de Sagarana, as linhas gerais que configuram sua poética. Um breve panorama da gênese e da recepção deste livro, seguidos pelos comentários às mencionadas cartas, abriu nossa pesquisa. Depois disso realizamos uma análise do conto Conversa de bois, oitava narrativa de Sagarana, enriquecida pelas declarações do escritor na referida correspondência em torno do seu processo de criação. Para complementar a análise e esclarecer certas questões relativas à técnica compositiva do autor não tratadas especificamente em sua poética, recorremos a alguns conceitos-chave de pensadores de diferentes tradições que, embora desenvolvidos em épocas distintas, encontram seu lugar nesse estudo do universo heteróclito criado por JGR. Uma atenção especial foi dada ao Formalismo Russo (Roman Jakobson (1896-1982), Viktor Chklóvski (1896- 1984), Iuri Tyniánov (1894-1943) e Ossip Brik (1888-1945)) cujos preceitos muitos deles em consonância com a poética rosiana foram uma referência válida para a metodologia de nossa análise.