Jornaleca

Modernizando um clássico: a representatividade LGBT+ em “Píramo e Tisbe”

TEATRO

A peça teatral Píramo e Tisbe é inspirada no conto de mesmo nome da mitologia romana. Neste, dois adolescentes de casas vizinhas apaixonam-se e começam a cultivar um intenso amor. Porém, a relação é impedida por seus pais, amedrontados por uma maldição que determinava a morte de Píramo após um relacionamento aos 17 anos. Ainda assim, o casal decide manter a relação, por meio de conversas entre-paredes e, através desse meio, combinam de fugir para a floresta, no meio da noite, para manter o vínculo sem obstáculos.

Quando Tisbe está sozinha no local, avista uma leoa e se refugia em uma gruta, deixando seu véu para trás. Logo após, Píramo encontra o animal com o tecido e a boca ensanguentada, presumindo a morte de sua amada. Ele, então, se suicida com uma espada por não suportar a suposta perda. Ao encontrar Píramo morto, Tisbe faz o mesmo. Os dois terminam a história sem vida, conforme profetizava a maldição, um acima do outro.

Tisbe, logo após o suicídio de Pîramo. [Imagem: Paula Moreira/Arquivo Pessoal]

A obra de teatro possui importantes mudanças à narrativa original, na medida em que atribui a Píramo o gênero feminino, transformando assim a peça num romance sáfico. Este ensaio busca realizar uma avaliação crítica sobre tal transformação, com base nos princípios da reinterpretação de clássicos, da teoria da New Left, e dos depoimentos de Sophia Salvi, atriz de Píramo.

Como a adaptação de clássicos abre espaço para outras leituras

Na releitura feita pelos alunos da Faculdade de Educação da USP quase que a totalidade dos papéis é interpretada por atrizes, o que exige que o roteiro traga inovação e diversidade ao palco, desafiando estereótipos sociais e papéis de gênero. A peça também conta com uma notável variedade de idade entre os atores, transformando o cenário apresentado.

As atrizes que interpretam a peça provam como as histórias clássicas, por mais antigas que sejam, podem ser reinventadas e repensadas para se encaixarem em qualquer contexto dado. O conto greco-romano de Píramo e Tisbe é um exemplo claro disso, por ser considerado a inspiração de Shakespeare para a elaboração do espetáculo Romeu e Julieta. Ambas as obras seguem a mesma linha, em que há um amor proibido que termina numa tragédia resultante de um engano concebido em momento de grande desespero.

Na peça de Shakespeare, o conceito originado na obra do dramaturgo grego Ovídio é adaptado para o contexto social da Europa do século XVI. O fator que divide o casal que dá título à obra deixa de ser uma profecia mortal descrita pelas Três Parcas e passa a ser uma histórica rixa entre famílias rivais. O equívoco que resulta no suicídio do casal deixa de ser um suposto ataque de um leão e passa a ser uma morte forjada por Julieta. Na reinterpretação feita pelos alunos, o roteiro segue os acontecimentos originais do drama grego, mas a obra é adaptada para abarcar as novas personagens femininas, mais uma vez sem alterar o conceito original do profundo romance vivido pelas protagonistas.

As atrizes que interpretaram Píramo e Tisbe, lado a lado, durante a apresentação do espetáculo homônimo. [Imagem: Paula Moreira/Arquivo Pessoal]

A adaptação, no entanto, não teve como objetivo central estimular a melhor aceitação da diversidade LGBT+. Sophia Salvi, atriz protagonista na peça, em entrevista concedida ao grupo, explica: “Por ser uma turma majoritariamente feminina, a Maria Clara (uma das atrizes e organizadoras) deu a ideia de ser um casal lésbico. (…) Foi realmente essa a questão principal: não temos homens, vamos fazer sáfico”.

Exatamente por tratar de uma simples troca de papéis e pronomes, a narrativa acaba por retratar o relacionamento entre duas mulheres de forma natural, levando o espectador a fazê-lo também. Produções midiáticas e narrativas têm mostrado grande capacidade de levar as pessoas a mudar concepções conservadoras que, antes, tinham cristalizadas. Talvez por causa disso, como afirma o jornalista Ricardo Alexino, o número de obras com temática LGBT+ vem aumentando nos últimos anos.

Nos anos 1950, um grupo de ativistas da Universidade de Oxford notara esse poder das mídias: a New Left. Eles questionavam a visão apocalíptica que se tinha até então sobre produções midiáticas, muito apoiada na ideia de indústria cultural da Escola de Frankfurt. Os frankfurtianos afirmavam que os produtos dos meios de comunicação de massa tinham como único objetivo alienar os espectadores e servir aos interesses do capital.

Porém, seria somente aquela elite intelectual provida de esclarecimento, enquanto o restante da audiência seria meramente passivo? A New Left se permitiu compreender a comunicação de massa também como um meio de promover mudanças na sociedade, do mesmo modo que a adaptação de “Píramo e Tisbe” pode contribuir para a valorização da diversidade.

A produção é, em todos os aspectos, perdidamente apaixonada. Tal qual o amor adolescente, inocente e obcecado retratado na peça, cada membro da produção parece ter um afeto obstinado em fazer com que aquele espetáculo tome forma em sua apresentação única. Parece até injusto, por isso, apontar o véu de amadorismo que cobre toda a performance. É fato que vez ou outra a entrega de uma fala carregue consigo a artificialidade e nervosismo característicos da inexperiência ou que, por vez, a própria enunciação prejudique o entendimento de alguns momentos pontuais da trama, mas qualquer acaso da ingenuidade acaba inexoravelmente coberto pela sombra do admirável carinho e esforço do grupo da FEUSP.

As adaptações no roteiro transpõem a narrativa atemporal de Píramo e Tisbe para os dias atuais de maneiras profundas e ocasionalmente grosseiras. É necessário questionar, afinal, o papel das inserções fora-de-lugar com referências a fatos e tecnologias cotidianos da vida contemporânea que frequentemente se esgueiram e explodem entre falas pouco relacionadas da história original, procurando tirar um ligeiro riso do público. Não apenas pelo anacronismo desmotivado, mas também pelo fato de que a mesma apresentação realiza adaptações muito mais contundentes em seus temas e formas.

A já citada transmutação de um romance tradicional a uma paixão Queer de elenco majoritariamente feminino, ou até mesmo a trilha sonora em grande parte composta por músicas do MPB, já são adições que dão passos enormes na transposição de uma história clássica para contextos atuais e locais, criando novos significados. A escolha de escalar duas duplas de atrizes para atuar como o casal principal também é certamente interessante, por mais prejudique um pouco a legibilidade da própria narrativa.

Afinal, Píramo e Tisbe, como conduzido pelo grupo de teatro da FEUSP, brilha sob diálogos e monólogos engajantes, sempre com um afinco e bom-humor de uma produção que cultiva uma paixão admiravelmente juvenil pelo próprio ofício.

Por Diego Facundini, Gabriel Alves, Lara Soares, Marcelo Teixeira e Nícolas Dalmolim

Referências

FERREIRA, Ricardo Alexino. Cresce o número de documentários sobre o universo LGBTI+. Jornal da USP, São Paulo, 18/dez, 2018. Disponível em: <https://jornal.usp.br/atualidades/cresce-o-numero-de-documentarios-sobre-universo-lgbti/.> Acesso em: 17 jul. 2023.

HALL, S. Vida e época da primeira New Left. PLURAL, Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.21.2, 2014, p.214-234.

HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. A indústria cultural: o iluminismo como mistificação de massas. Pp. 169 a 214. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da cultura de massa. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 364p.

SHAKEPEARE, W. Romeu e Julieta. Tradução: José Francisco Botelho. 1 ed. Guarulhos: Penguin-Companhia, 2016.TREMESKIN, Leonardo. Píramo e Tisbe. Disponível em: <https://www.mitografias.com.br/2016/02/piramo-e-tisbe/>. Acesso em: 28 jun. 2023.

Jornaleca

Universidade de São Paulo - USP | Escola de Comunicações e Artes - ECA | Departamento de Jornalismo e Editoração - CJE | Disciplina: Conceitos e Gêneros do Jornalismo e suas Produções Textuais | Professor: Ricardo Alexino Ferreira| Secretária de Redação: Lara Soares | Editores: Nicolle Martins (Cidadania), Sofia Zizza (Ciências), Julia Alencar (Cultura), Gabriel Reis (Diversidades), Nícolas Dalmolim (Educação), Artur Abramo (Esportes) e João Chahad (Local).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *