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A reinterpretação do destino de personagens teatrais femininas na peça “Shakespeare em Chamas”

TEATRO

William Shakespeare (1564-1616) é considerado o maior dramaturgo da história. Suas peças teatrais são encenadas até os dias de hoje e vistas como o legado do escritor inglês para a humanidade. Elas são responsáveis por emocionar, chocar e, principalmente, inspirar outros artistas a desenvolverem histórias sobre a complexa psique humana. É a partir dessa concepção que atores e alunos do Teatro Escola Macunaíma de Campinas elaboraram e encenaram a peça Shakespeare em Chamas. A obra, apresentada durante o início do mês de julho de 2023 no Teatro Escola Sia Santa, vai além de uma homenagem ao grande dramaturgo do final do século XVI: é uma reinterpretação crítico-reflexiva do conjunto das suas históricas obras, levantando discussões atuais sobre o destino do feminino e a diversidade do poder de fala no meio lírico e teatral. Por meio da narrativa de um William Shakespeare em desespero pelo fim do seu trabalho, a peça suscita o debate da superação da monossemia pela polissemia, levando o escritor, agora personagem, a revisitar seus escritos, sentimentos e vivências.

Desdobramentos da peça teatral

Uma das características primordiais da peça Shakespeare em Chamas é sua interatividade com o público: do ínicio ao fim da apresentação teatral, os atores entram em contato com a plateia, de forma a extrapolar a presença no palco. O primeiro ato se inicia na entrada do teatro, com uma peregrinação de diversos personagens de William Shakespeare, convidando os visitantes a participarem da história a ser narrada. Ao aproximar-se do palco, é possível observar um cenário com o escritor-personagem em um bloqueio criativo, completamente sem memória a respeito de suas histórias. A partir do sentimento de revolta compartilhado pelas personagens femininas escritas pelo dramaturgo, as “musas de Shakespeare” se rebelam contra seu criador, na busca de serem relembradas.

William Shakespeare, ao fundo, em seu conflito mental, enquanto a personagem de Lady Macbeth vasculha a luz de velas algo que não pode ser encontrado. [Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

Com o decorrer da narrativa, há um constante fluxo de figuras femininas clássicas das peças shakespearianas entrando em contato com o escritor de diversas maneiras. Um exemplo é Cleópatra (Antônio e Cleópatra, 1606), que, com sua personalidade forte e espírito audacioso, confronta Shakespeare sobre a dor que lhe foi imposta ao perder o amante e a própria vida. Outro é Julieta (Romeu e Julieta, 1597), sonhadora garota que relembra com tristeza e melancolia o seu amado morto. O enredo não se limita apenas a obras do gênero da tragédia, trazendo personagens como Catarina (A Megera Domada, 1594) e Rosalinda (Como Gostais, 1598-1600), que inserem tanto toques de comicidade e ironia para as cenas quanto perspectivas diferentes sobre o lugar da mulher nas histórias dramáticas e na própria sociedade. Exemplo disso é que ambas as personagens, partindo das suas desacreditadas experiências, zombam e desprezam a ideia de amor perfeito ambicionado por Julieta.

“Pelo menos eu fui uma das que você não matou. Enxergam as mulheres como bonecas, úteis apenas como obedientes”
Fala de Catarina em diálogo conflitivo com William Shakespeare.

Em síntese, o elemento central presente em grande parte da peça é o limbo de sofrimento no qual quase todas as personagens shakespearianas estão presas. Apesar da agonia e do desespero trazidos à tona para o dramaturgo, esse permanece convicto sobre os destinos das figuras femininas em suas obras. Dessa forma, a trama se aprofunda, revivendo mais histórias de mulheres que não tiveram outra escolha a não ser serem eternizadas por suas tragédias. A loucura de Lady Macbeth (Macbeth, 1606), o estupro e morte de Lavinia pelo próprio pai (Tito Andrônico, 1594) e o afogamento de Ophelia (Hamlet, 1603) são encenados de modo a agregar ainda mais na proposta crítica do enredo. A reflexão e, finalmente, a compreensão da angústia feminina por Shakespeare são os pontos de virada da narrativa, os quais encaminham a peça para seu ato final.

“Se não existissem histórias minhas mãos não estariam assim!”, grita Lady Macbeth com as mãos sujas de sangue, na companhia de Julieta e Rosalinda. O figurino da peça se baseia em vestimentas comuns do século XVI e das próprias histórias de Shakespeare. [Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

Análises da peça teatral

A principal reflexão suscitada pela peça Shakespeare em Chamas parte, primeiramente, da ideia de que um autor deve possuir uma conexão com seu objeto artístico. “Shakespeare, diferente de muitos autores, não viu sua obra tendo continuidade. Viu durante um período muito curto, e depois faleceu. E ele é o mais montado em todos os continentes, grupos e escolas. Mas ele não pôde ver isso. A gente começou a pensar a partir desse aspecto: como seria o autor não deixando sua obra para trás?” discorre Barbosa Neto, diretor da peça. O grande conflito inicial do enredo é a desconexão do dramaturgo inglês com a dor e o sofrimento de suas personagens femininas. E é a partir desse elemento que a reviravolta de roteiro se apresenta: a peça teatral não se concentra em Shakespeare, mas sim em suas personagens em busca de uma identidade.

Isso não apenas demonstra uma renovação temática a partir da reinterpretação de narrativas já consagradas, como também abre discussão para uma série de relações. A primeira seria a da crítica exposta na obra com os conceitos de monossemia e polissemia. Enquanto William Shakespeare é irredutível em suas escrituras, a monossemia prevalece ao omitir-se as vozes de denúncia das musas shakespearianas. Com a progressão e a condução da história dando-se por parte das personagens femininas, a polissemia passa a ocupar espaço ao trazer as várias vozes de figuras que desejam mais dignidade e representatividade em seus enredos.

“Eu odeio William Shakespeare por matar todas nós! O melhor de todos os homens, para no fim voltarmos ao nada, ao limbo.”
Fala de Lavinia ao relembrar do seu destino cruel na peça Tito Andrônico.

Outra que poderia ser citada é a questão da utopia presente na condição inicial dos registros teatrais de Shakespeare, já que esta apenas engloba a visão de um dramaturgo satisfeito com seu trabalho, ignorando a dor pela qual as mulheres de suas narrativas
experienciam. Por fim, deve-se ressaltar a relação da peça com a pauta de diversidade pelo fato de Shakespeare em Chamas reinterpretar obras teatrais clássicas, de modo a criar uma abertura do espaço de fala e escolha do destino para mulheres silenciadas em suas próprias histórias. Não apenas as versões dessas personagens ganham mais relevância, como também elas se fortalecem umas às outras por meio do sofrimento compartilhado. “Ao longo de como vamos nos lembrando das histórias, vamos interagindo e nos aproximando. Têm cenas super fortes como a da Ophelia com o Hamlet e isso causa uma comoção feminina. Então a gente vai se unindo cada vez mais.”, afirma Flávia Möller, atriz que interpreta a personagem Rosalinda na peça.

As mulheres das diversas obras de Shakespeare rodeando seu criador, enquanto o cenário ao fundo projeta peças do artista sendo performadas ao redor do mundo inteiro. [Arquivo pessoal: Fernanda Zibordi]

Conclusão

Shakespeare em Chamas se apresenta como uma possibilidade de reinvenção teatral a partir do legado de um dos maiores escritores da história. Trata-se de uma obra que busca homenagear o seu mentor, mas ainda assim levanta pontos importantes a serem debatidos na realidade atual. A abordagem crítico-reflexiva do lugar e destino das mulheres numa sociedade essencialmente machista e patriarcal possui como resultado final a exposição de uma dramaturgia que não apenas imerge o público na narrativa por meio da grande presença da interatividade, mas também pela qualidade na ambientação geral. Esta última é baseada em aspectos como cenário, figurinos e trilha sonora. Temáticas como a transitoriedade entre monossemia e polissemia, a unilateralidade de um cenário utópico e a diversidade por meio do poder de fala feminino são relacionáveis aos simbolismos presentes na peça. Em síntese, a apresentação teatral cumpre seus objetivos artísticos e políticos ao englobar características de autenticidade, criticidade e esteticidade.

Por Fernanda Zibordi Paulo

Referências
CANTON, James (Org.). et al. O livro da literatura. 2a ed. São Paulo, Globo, 2018.
GUROVITZ, Helio. Shakespeare, 400 anos depois. G1, 2016. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/shakespeare-400-anos-depois.html>. Acesso em dia: 12 de julho de 2023.
MANGUEL, Alberto. Shakespeare e Cervantes, essa é a questão. EL PAÍS, 2016. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/14/cultura/1460640879_175928.html>. Acesso em dia: 12 de julho de 2023.

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