ISSN 2359-5191

25/11/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 116 - Saúde - Faculdade de Saúde Pública
Diálogo com usuários de crack incentiva políticas de autocuidado
Iniciativas públicas buscam ajudar pessoas que usam crack sem impor abstinência à droga
Cracolândia no início de 2015/ Ilustração:Marcelo maffei

Uma fogueira cercada de pessoas tocando samba. Um grupo jogando capoeira, enquanto o cheiro de churrasco se espalha pelo ambiente. Talvez, a Cracolândia nunca tenha sido vista com esse olhar. A visão estigmatizada dos usuários de crack, muitas vezes, os exclui do convívio social, colocando os à margem da sociedade. Um estudo realizado pelo pesquisador e psicólogo Thiago Calil, da Faculdade de Saúde (FSP) da USP, e orientado pelo professor Rubens Adorno buscou compreender os fatores que influenciam na vida (infraestrutura, degradação do espaço, entre outros) desses indivíduos. Desse modo, pensar em políticas públicas que pudessem ajudá-los a refletir sobre suas condições sem impor a abstinência à droga.

Calil é um dos membros do Centro de Convivência É de Lei. Uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que busca promover a redução de danos sociais e à saúde relacionada ao uso de drogas. Durante seu estudo, o pesquisador passou um período na Cracolândia realizando um trabalho etnográfico para acompanhar a rotina das pessoas que fazem uso de crack. Segundo ele, a partir da aproximação com os usuários é possível incentivá-los a preocupar-se mais com questões referentes ao autocuidado.

A proposta não era ir à rua para falar apenas de saúde, eram discutidos diversos assuntos (questões familiares, a morte da mãe, por exemplo). No entanto, a partir desse diálogo, é possível estabelecer uma relação de confiança. Isso, em longo prazo, abre espaço para as pessoas refletirem sobre seu quadro de vida e dos limites do seu corpo, menciona o pesquisador.

Pequenas ações de cuidado

Uma iniciativa de autocuidado e redução de danos é oferecer aos usuários de crack manteiga de cacau. Como o efeito do crack é muito rápido e intenso, é possível que este uso torne-se compulsivo. Isso proporciona feridas nos lábios devido às queimaduras ocasionadas pelo calor do cachimbo. Além disso, também são disponibilizadas piteiras de silicone (tubo onde o cachimbo é inserido). O intuito é evitar as queimaduras e incentivar o uso individual do cachimbo, já que, quando ele é compartilhado, vira porta de entrada para diversas doenças. Esses insumos buscam prevenir as feridas, mas também é uma ferramenta eficaz para dialogar com os usuários sem julgá-los moralmente, explica o psicólogo.

Quando o pesquisador fala sobre a piteira de silicone, informa a respeito dos perigos de compartilhar o mesmo cachimbo, como por exemplo, de adquirir herpes. Essa reflexão incentiva os usuários de crack a encontrarem meios de se proteger. Um dos usuários inventou um cachimbo mais longo, fazendo com que o calor não chegasse tão perto da boca, menciona Calil.

Ilustração: Thiago Calil

As políticas públicas

Em 2014, a Prefeitura de São Paulo implementou o “Programa de Braços Abertos”. A iniciativa é destinada a usuários de crack e moradores de rua da região da Luz. Os participantes têm acesso aos hotéis da região central, três refeições diárias e trabalho remunerado. Além disso, o projeto realiza  oficinas de arte, música e cultura e aulas de esporte.

Para o pesquisador, o programa é uma proposta muito inovadora, pois não exige que os usuários deixem de usar a droga para terem acesso aos benefícios. Segundo ele, é necessário entender o momento que a pessoa está passando. Interromper o uso repentinamente, em geral, pode ser agressivo ou causar nela um sentimento de grande frustração. Assim, o projeto garante alguns direitos essenciais (trabalho, moradia, entre outros) a esses usuários. “Como a pessoa pode se organizar se ela não tem nem onde dormir”, destaca Calil.

Embora seja uma iniciativa interessante, também possui falhas. De acordo com o psicólogo, o programa foi implantado com poucos recursos. Os hotéis eram precários e o espaço de atendimento, no início, não tinha banheiro. Além da infraestrutura ser escassa, a qualificação dos profissionais que iriam atender os usuários demorou a ocorrer. O pesquisador aponta que o projeto começou em janeiro, de 2014, e só em novembro houve uma formação para equipe de rua.

Um dos principais julgamentos direcionados ao “Braços Abertos” é a questão do trabalho remunerado. Muitos acreditam que esse dinheiro acaba financiando ainda mais o vício. Para Calil, essa é uma crítica rasa, pois se um indivíduo desenvolve uma atividade, ele faz o que quiser com seu retorno financeiro. Essa é uma forma de dar autonomia à pessoa que usa drogas. Ele pode chegar a repensar como usar seu salário. A partir da sua experiência, o psicólogo percebeu que algumas pessoas já não o usavam apenas para comprar crack, mas também para adquirir produtos de limpeza ou mesmo um tênis novo.

Quem é o traficante?

Mesmo com as iniciativas do programa, a repressão policial ainda é muito intensa, afirma o pesquisador. Para ele, essa ação busca combater o tráfico, entretanto a legislação não é muito clara quanto à tipificação desse crime. Na Cracolândia, o crack acaba virando moeda de troca de muitos usuários, que o utilizam para adquirir utensílios para sua sobrevivência, como uma blusa de frio, por exemplo.

Desde o começo do programa, o uso de crack passou a ser controlado, o dia inteiro, por um ônibus policial. Isso fez com que o tráfico se organizasse em carroças e barracões. Em abril, ocorreu uma ação de segurança, com intuito de eliminar esses pontos. Foram apreendidas algumas carroças, porém, nem todas elas estavam vinculadas à venda de drogas. “Você oferece os direitos por um lado e por outro o viola”, acentua o psicólogo. Segundo o pesquisador, a partir do seu estudo pode concluir que, muitas vezes, as políticas não são suficientes, assim é necessário se aproximar das pessoas e escutá-las dentro de suas realidades para poder criar iniciativas adaptadas ao seu contexto.


Leia também...
Nesta Edição
Destaques

Educação básica é alvo de livros organizados por pesquisadores uspianos

Pesquisa testa software que melhora habilidades fundamentais para o bom desempenho escolar

Pesquisa avalia influência de supermercados na compra de alimentos ultraprocessados

Edições Anteriores
Agência Universitária de Notícias

ISSN 2359-5191

Universidade de São Paulo
Vice-Reitor: Vahan Agopyan
Escola de Comunicações e Artes
Departamento de Jornalismo e Editoração
Chefe Suplente: Ciro Marcondes Filho
Professores Responsáveis
Repórteres
Alunos do curso de Jornalismo da ECA/USP
Editora de Conteúdo
Web Designer
Contato: aun@usp.br