Em meio a uma política desenvolvimentista do Governo Federal, grandes obras de infraestrutura resultantes do Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) têm impactado comunidades remotas no Norte e Nordeste. Através do estudo de sítios no Tocantins e Pernambuco, a pesquisadora Márcia Lika Hattori, do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP), buscou entender como a arqueologia pode agir de maneira socialmente engajada ao auxiliar populações expropriadas de seu patrimônio.
A legislação ambiental brasileira exige que empreendimentos que possam causar impactos no meio ambiente — tais como hidrelétricas, rodovias e ferrovias — devem ser precedidos de pesquisas arqueológicas, além de diagnósticos sócio-econômicos e geológicos. Segundo Márcia Hattori, “nesses relatórios, são levantados dados sem nenhum diálogo com as comunidades”. Para a realização de sua dissertação de mestrado, a estudiosa buscou aplicar metodologias participativas, com envolvimento mais conjunto das sociedades. “Ao empregar esse método, levantei inúmeros patrimônios que haviam sido ignorados tanto pelos levantamentos sócio-econômicos da empresa, como também pelos próprios arqueólogos”.
A pesquisa de Márcia lidou com um tema delicado: a morte. Um de seus estudos de caso se baseava na comunidade quilombola de Custódia, no sertão do Nordeste. A ferrovia Transnordestina, que deveria cruzar todo o estado de Pernambuco, havia sido planificada para passar por lá. Se o projeto fosse executado, porém, uma capela teria que ser destruída. “Durante a pesquisa arqueológica [que antecipava a obra], conforme a escavação, os moradores se apropriaram dos remanescentes humanos que foram aparecendo no local [que também abrigava um cemitério] para usar como luta”, conta Márcia. A partir desse acontecimento, eles entram com uma ação no Ministério Público Federal, e conseguiram fazer com que a ferrovia desviasse da igreja.
A partir desse caso, a pesquisadora buscou entender o conceito de Arqueologia do Contemporâneo. “Arqueologia é entender as mudanças que acontecem no território ao longo do tempo, e como isso faz parte da história de determinados grupos", afirma. "Quer uma mudança maior do que uma ferrovia, uma mega obra, mudando completamente as dinâmicas e relações sociais que estão acontecendo ali?”.
Levantamento dos lugares sagrados das comunidades rurais em Arraias, Tocantins.
Foto: Luana Antoneto Alberto. Zanettini Arqueologia
De cemitérios a sítios arqueológicos
Em seu estudo de caso em Arraias, no Tocantins, Márcia pôde decidir junto à comunidade se um cemitério seria cadastrado como sítio arqueológico, para evitar a construção de uma barragem de rejeito, composta de descartes da mineração. “A partir do momento que você transforma algo em sítio arqueológico, não é basicamente dar uma alçada de patrimônio. Tudo aquilo que sai de lá vira acervo. Então no caso de remanescentes humanos, você corre o risco de transformar o avô de alguém em coleção, podendo ser exposto em museus”.
Por se tratar de um cemitério recente, não existia uma legislação precisa que pudesse determinar se tratava-se de um contexto arqueológico, forense ou relacionado ao serviço funerário. A pesquisadora teve que buscar relações consanguíneas entre os remanescentes humanos e membros da comunidade. Após encontrar uma senhora que tinha seus avós enterrados no local, decidiu-se por não transformar o local em sítio arqueológico. Márcia conta das razões que levaram a senhora a tomar tal decisão. “Ela me falou: Eu sempre fico com medo de que no dia do juízo final, quando as pessoas se levantarem, os corpos que eu decidi tirar vão se levantar e ver que não estão no seu lugar. Isso me preocupa". A partir desse diálogo, a pesquisadora reconheceu que as pesquisas arqueológicas devem levar em consideração o arcabouço religioso das comunidades. “Acho que os arqueólogos precisam estar preparados para entender toda essa complexidade que é a sociedade”, conclui.