ISSN 2359-5191

17/05/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 59 - Sociedade - Faculdade de Medicina
Ações judiciais contra o SUS determinam compra de produtos importados e fora do registro da Anvisa
No estado de São Paulo, quase R$ 395 milhões foram gastos em 2014 apenas com a compra de medicamentos e produtos de saúde
Sede do Ministério Público de São Paulo. Foto: Reprodução/Google.

Decisões judiciais a favor da compra de produtos importados, em fase experimental ou de marcas específicas, que possuem equivalentes mais baratos, são comuns no Poder Judiciário brasileiro e contrariam a lei. As conclusões foram feitas a partir das ações judicias aplicadas contra o Sistema Único de Saúde (SUS) no estado de São Paulo entre os anos de 2010 e 2014, que foram analisadas pelo promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo, Reynaldo Mapelli Júnior.

Em sua tese de doutorado, defendida em 2015 na Faculdade de Medicina da USP, o promotor de justiça, que já trabalhou na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e acompanhou de perto os pedidos, faz uma análise crítica do uso da justiça para a obtenção de serviços de saúde não regulamentados pela Anvisa e, muitas vezes, para pessoas que estão em clínicas privadas. Tudo às custas do sistema público.

“Depois da Constituição de 1988, o Direito brasileiro passou a defender que os direitos fundamentais são autoaplicáveis, ou seja, que direitos sociais, como a saúde, podem ser exigidos judicialmente”, Mapelli explica. A partir de então, o número de ações judiciais exigindo que o Estado fornecesse medicamentos e custeasse tratamentos passou a aumentar.

No entanto, a legislação deixa claro que as determinações devem seguir os protocolos clínicos previstos pelo SUS. Medicamentos importados ou em fase de testes, por exemplo, não devem ser fornecidos pelo sistema público, pois não possuem eficácia médica comprovada e, portanto, não têm registro para serem comercializados no país. São medidas de segurança adotadas na Lei Orgânica da Saúde, que rege o Sistema Único de Saúde.

Dilema

A postura do Poder Judiciário frente aos pedidos mudou bastante após uma decisão de 1997, quando o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Celso de Mello aprovou a liberação de R$ 63,8 mil para que João Batista Gonçalves Cordeiro, com 12 anos na época, viajasse aos Estados Unidos para um tratamento experimental. Ele era portador de uma doença rara, chamada distrofia muscular de Duchenne. A decisão foi justificada na alegação de que o direito à vida deveria se sobrepor aos interesses financeiros do Estado, mesmo que não houvesse comprovação científica de que o método fosse eficiente.

O Jornal O Estado de S. Paulo noticia a decisão judicial do ministro Celso de Mello em 5 de fevereiro de 1997. Fonte: acervo do Estadão.

Um dos grandes problemas dessa lógica é que uma quantidade considerável de recursos do orçamento público é direcionado a algo muito caro, experimental, e discutível do ponto de vista ético. Para o promotor, este não deve ser encarado como um dilema entre o dinheiro e a vida, mas sim entre uma vida e a vida de outros indivíduos, geralmente mais humildes, que nem acesso à justiça têm e para quem o dinheiro poderia ser direcionado.

De qualquer modo, foi esse caso que suscitou o que predomina hoje nas instituições. “Se olharmos as decisões, quase sempre elas vem nesse sentido, de ser irrelevante a questão de recursos, se o tratamento é experimental ou não, se o medicamento tem registro na Anvisa ou não. Na minha visão, não é isso o que a Constituição Federal diz”, afirma Reynaldo.

Assim, a pesquisa revelou que, em regra, as determinações descumprem a lei. Um exemplo é o fato de que mais de 60% das ações aplicadas contra o SUS são de pessoas que estão em hospitais privados, recebendo um tratamento diferenciado, e que buscam o Estado para financiar tratamentos de alto custo.

“Quando a pessoa está em um hospital privado e ingressa em uma ação judicial contra o SUS, das duas, uma: ou aquilo não é necessário, porque não está previsto em protocolo, não tem evidência científica. Ou, se for necessário, o juiz deve determinar que aquela pessoa ingresse no SUS, porque ela não pode ficar com um médico privado enquanto utiliza dinheiro público”, defende Mapelli.

É importante reconhecer que a existência do SUS enquanto proposta de promover o direito à saúde para todos é muito ousada. Portanto, se eventuais falhas ocorrerem no Sistema Único de Saúde, elas devem de fato ser corrigidas por decisões judiciais. A grande questão é que, caso a verba pública, já escassa, seja direcionada ao que não é necessário ou descumpre a lei, o ideal de saúde para todos nunca será atingido.

Em 2014, apenas com medicamentos e produtos, o estado de São Paulo teve um custo de quase R$ 395 milhões, sem contar internações e tratamentos — em 2010, foram R$ 189 milhões. O aumento do dinheiro gasto deve-se ao maior número de ações judiciais aplicadas contra o SUS durante o período, que subiu de 9.385 em 2010 para 14.383 em 2014.

Antes disso, em 2009, o ministro do STF Gilmar Mendes convocou a Audiência Pública de nº 4 para discutir questões relativas ao sistema público de saúde, incluindo o fornecimento de medicamentos não previstos nos protocolos clínicos. Um dos resultados da discussão foi a recomendação de nº 31 do Conselho Nacional de Justiça. Mesmo assim, para o pesquisador, mudanças não foram sentidas na prática.

Medicamentos estrangeiros

O impacto econômico da entrada de uma droga estrangeira no país é grande. Desde 1976, a lei proíbe que o Estado compre medicamentos importados. Todavia, pedidos de medicamentos estrangeiros, muitos em fase de teste, são frequentemente aceitos no Poder Judiciário.

Logo, quando é determinado, hipoteticamente, que um município específico compre uma droga desenvolvida na China, toda a máquina do Estado é mobilizada para fazer com que ela entre no país. Primeiro, é preciso descobrir onde existe esse medicamento e quem o fornece, pois não é algo oficializado. Em seguida, é feito um procedimento de licitação, ou de dispensa de licitação sob ordem judicial, para que ele seja importado, em geral com o preço que a indústria farmacêutica quer.

Quando o medicamento chega em Brasília, é muitas vezes apreendido pela alfândega, afinal é uma substância ilegal. Então, é preciso recorrer à Anvisa ou à Polícia Federal para que um ofício seja expedido para liberar o produto. “Tudo isso é dinheiro gasto, é recurso humano, é trabalho de todos para fazer uma droga ilegal entrar no país. E evidentemente esses produtos quase sempre são muito caros e com um equivalente mais barato no Brasil”, diz o promotor.

Para ele, os juízes poderiam pedir um esclarecimento do médico do porquê ele ter prescrito tal marca e checar se não há outra alternativa de medicamento, mais acessível, para substituí-lo. Muitas vezes, porém, as ações contra o SUS vêm acompanhadas de um mandado de segurança, instrumento de justiça que torna o processo mais rápido, pois não exige provas, ou de um pedido de liminar, para ser analisado com urgência.

Além disso, estratégias agressivas, e algumas vezes ilícitas, da indústria farmacêutica contribuem para que ela conquiste o seu mercado consumidor e exerça influência sobre as práticas médicas. “Boa parte dessa indústria paga prêmios e congressos para médicos, tem interferência nas faculdades, faz propaganda dentro dos consultórios. Está na hora de nós do Direito sermos cautelosos em relação a ela”, afirma Reynaldo.


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