Uma nova forma de enxergar o fenômeno da anorexia é defendida pela psicanalista Jaqueline Pinto Cardoso em sua dissertação de mestrado. Esta considera a existência de um discurso homogêneo e comportamentos uniformizados entre pacientes com o sintoma, sendo derivados de um contágio psíquico. Para aprofundar o estudo no assunto, foi utilizado o conceito psicanalítico de identificação, presente na obra de Freud e Lacan.
Após trabalhar com diversas pacientes em instituições de tratamento e em clínica particular, Jaqueline observou um discurso homogêneo entre elas. “Eu sou gorda”, “Não tenho fome” e, principalmente, “Não tenho problema algum”, são algumas das falas mais comuns entre elas. É quase uma regra que toda anoréxica severa ache que não existe problema com sua saúde física ou psicológica, mostrando assim, a gravidade do problema. Porém, o que mais chama atenção é a perda de particularidades em seus discursos. As pacientes se mostram avessas à investigações internas, a falar sobre suas singularidades, gostos e sua vida pessoal. Aparentemente, sua reflexão gira em torno da distorção da sua imagem corpórea.
A partir de tais observações, a pesquisa tomou rumos a fim de investigar quais seriam as causas dessas homogeneidades em discursos e comportamentos, configurando a hipótese de um contágio psíquico. “ A conclusão foi que nas anorexias severas, que acomete mais sujeitos do sexo feminino, houve uma falha na identificação narcísica, comprometendo a constituição da imagem unificada do eu”, comentou a psicanalista. A identificação narcísica é um conceito de Freud, o qual posteriormente teve releitura feita por Lacan, e representa o momento da constituição de cada sujeito. Sua ocorrência se dá entre o sexto e décimo oitavo mês de vida. Nos casos estudados, pressupõe-se que a unidade de imagem individual da paciente não tenha se formado plenamente. Diante dessa falta de unidade, a anoréxica busca um excesso de identidade através da identificação imaginária com outras anoréxicas.
Na Identificação Imaginária do Estádio do Espelho, cada paciente vê em outros sujeitos com o mesmodiagnóstico, o seu reflexo. A explicação mais simples seria: a anoréxica não tem uma imagem formada de si, assim, encontra seu reflexo em outra semelhante, se confunde com ela, revelando uma tendência a buscar o igual. Não é um processo de cópia ou imitação consciente, mas sim, identificação inconsciente. Assim, derivam-se os discursos repetitivos, homogêneos, sem aprofundamentos e particularidades. Cada paciente perde sua singularidade e identifica-se imaginariamente com outras anoréxicas.
Outra conclusão é que esse o processo de identificação imaginária relaciona-se com uma experiência de isolamento. Apesar de haverem blogs na internet onde pacientes compartilham receitas para emagrecer, vivências e conselhos, as anoréxicas severas tendem a se isolar. O afastamento de amigos, família e trabalho é muito comum nos estágios mais avançados do sintoma, onde a paciente está focada em perder peso e manter suas metas.
Contribuições ao tratamento
Levando em conta os conceitos utilizados na pesquisa, a conclusão traz contribuições ao tratamento da anorexia, que geralmente ocorre em instituições psiquiátricas. O método mais utilizado envolve trabalhos em grupo, que podem ser iatrogênicos quando não dão espaço para a escuta da singularidade de cada sujeito. Neste tipo de atividades, as pacientes são incentivadas a falar sobre sua condição e compartilhar umas com as outras. Porém, é muito comum que ocorra a identificação entre elas, dizendo “Eu também faço isso”, “Eu também sou assim”. “O trabalho em grupo não pode legitimar e cristalizar o processo de identificação entre elas, mas sim, criar condições para que se diferenciem e expressem suas particularidades”, explicou Jaqueline.
Assim, o resultado da pesquisa sugeriu um outro tipo de abordagem, que valoriza a escuta da singularidade de cada sujeito. Nos trabalhos em grupo, as investigações não devem ser focadas no sintoma anoréxico, mas dar espaço a questionamentos que envolvam particularidades como gostos, hobbys, família e desejos . A tentativa seria de quebrar as barreiras da homogeneidade e explorar o particular de cada uma. Assim, todas as pacientes envolvidas poderiam se enxergar como seres singulares e não como “todas iguais” e identificadas com a anorexia.