ISSN 2359-5191

30/06/2016 - Ano: 49 - Edição Nº: 87 - Saúde - Departamento de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional
Valorizar o trabalho dos juízes é fundamental para a saúde mental desses profissionais
Pesquisa da Faculdade de Medicina e da Escola Politécnica afirma que a falta de reconhecimento dificulta o trabalho de juízes e funcionários públicos
Ilustração por Natalie Majolo

A sociedade tem convergido cada vez mais na individualização do sujeito, seja na vida pessoal ou profissional. No ramo do trabalho, espera-se uma pessoa autônoma, que seja produtiva, racional e saiba lidar bem com os problemas da profissão. Todos querem dar o melhor de si, e se sentir bem consigo mesmos; o trabalho é visto como algo individual e isolado, apesar de se dar coletivamente - depende do esforço de cada um. Quem está na carreira de magistratura não é diferente, e as decisões que essas pessoas tomam em seu trabalho diário impactam diretamente a sociedade. Através do método da Psicodinâmica do Trabalho (PDT), o grupo composto pelos professores coordenadores Laerte Sznelwar (Poli - USP), e Selma Lancman (Fofito) e integrantes, pesquisaram o trabalhar e saúde mental dos magistrados. O estudo afirma: precisamos mudar com urgência a coisificação das pessoas, e valorizá-las. A saúde de todos depende disso.

Todos queremos nos sentir bem com nós mesmos. Temos sonhos, expectativas, objetivos: queremos o nosso próprio local à luz. Nesse processo, é possível que as pessoas se sintam sozinhas, se isolem, e que não consigam corresponder às próprias expectativas, sequer achar que se é bom o bastante. Mas “fraquezas” (ou humanidades?) não são aceitas perante a intensa cobrança pela produtividade no trabalho. “Não é à toa que estamos frente a verdadeiras epidemias de distúrbios e transtornos mentais relacionados com o trabalho, uma vez que ao lutar para conseguir o ‘meu lugar’ na sociedade, isto acaba por ser um processo que se constrói em ‘detrimento dos outros’, favorecendo não a individualização e o desenvolvimento de cada um, mas o isolamento e a desolação”, afirma Laerte.

Saúde, condições de trabalho e meritocracia

Na carreira de um magistrado, suas decisões impactam diretamente não apenas a relação entre os indivíduos e a sociedade, mas também as políticas que regem a sociedade, influenciando toda a cultura. Nos últimos anos, há uma crescente incidência de problemas de saúde entre os profissionais da área, principalmente relacionados à distúrbios psíquicos. De acordo com Laerte, é preciso entender melhor o que se passa na relação dos trabalhos dos juízes e trabalhadores da justiça, principalmente com a constatação desse aumento de doenças, afastamento do trabalho, e a intensa banalização de medicamentos psicoativos. “Há que se avaliar melhor o que se passa com relação ao trabalhar dos magistrados e de outros trabalhadores da Justiça, sobretudo no que diz respeito aos modos de avaliação do trabalho, das possibilidades de se desenvolver um trabalho efetivo e que, portanto, não se perca o sentido com relação ao esforço e à dedicação”.

Esse esforço e dedicação por tentar alcançar as expectativas está diretamente relacionado à saúde. O pesquisador afirma que o esforço dedicado ao trabalho de compreensão de um determinado caso, do estudo que ele requer, das relações com outros atores do sistema judiciário, das dúvidas e conflitos com relação aos fatos apresentados, a consonância com a jurisprudência, a gestão das relações entre diferentes trabalhadores que atuam nos processos, entre tantos outros componentes do trabalhar, não é passível de mensurações. O trabalho é subjetivo, assim como qualquer avaliação de outros para com este trabalho. Se a subjetividade e o trabalho não são possíveis de serem medidos, como é que o trabalho dessas pessoas é valorizado?

Teoricamente, a carreira de um magistrado seria guiada por modos de avaliação que considerariam o mérito do seu esforço, tanto no que diz respeito à qualidade do seu trabalho, como o tempo em que atuam na profissão (a senioridade). Não é possível mensurar o trabalho pela quantidade, mas, sim, sua utilidade e qualidade. “A avaliação do trabalho dos outros sempre deve ser pautada por uma busca em entender o que, de fato, as pessoas fazem, de que modo buscam se aprimorar e, sobretudo, como desenvolvem relações que permitam o seu desenvolvimento enquanto pessoa e enquanto profissional”. Portanto, o trabalho deve ser entendido para ser avaliado.

O pesquisador diz que não existem situações idênticas, e os cenários que os juízes trabalham são distintos: qualquer comparação entre os diferentes tipos de justiça ou entre os diferentes locais, sempre leva a injustiças. “Não se pode comparar os feitos dos magistrados sem considerar as condições de trabalho, os tipos e a quantidade de processos que tratam, as relações sociais, as questões de gênero, as possibilidades de cooperação entre pares, dentre outros aspectos do seu trabalho”.  Segundo a metodologia da Psicodinâmica do Trabalho seguida na pesquisa, só é possível, através de mecanismos que envolvam os pares, a hierarquia e aquelas para os quais trabalhamos.

Da metologia aos resultados

Elaborada na década de 80 por Christophe Dejours, a PDT estuda as relações entre trabalho e saúde mental. Para o psiquiatra e psicanalista, o trabalho e mais precisamente o trabalhar, são considerados fundamentais para a construção da saúde mental das pessoas. Para resolver situações-problema que ocorrem diariamente no trabalho, a subjetividade e inteligência de cada um é posta em prova. No momento em que uma subjetividade precisa julgar subjetividades alheias, gerando resultados únicos para cada situação única, o trabalho se torna extremamente árduo.

Ao atingir tantas pessoas de forma direta, impactando suas vidas de forma substancial, o trabalho do juiz é questionado de forma constante, ou não é reconhecido. Sendo o desenvolvimento pessoal e saúde psíquica tão importantes a todos, os constrangimentos aumentam de forma substancial a possibilidade de adoecimento desses profissionais.

Para Laerte, o principal ponto da abordagem da PDT é o da recuperação da possibilidade de refletir em conjunto sobre o trabalhar, isto é, sobre a vivência de cada um com relação ao seu trabalho. O método não está voltado para estudos estatísticos, e a pesquisa foi construída com juízes e juízas de diferentes áreas da Justiça e em diferentes locais do Brasil. Para o estudo, foram organizados grupos de reflexão e de expressão. “Eles constituem um discurso sobre as suas experiências e, que através, do seu compartilhamento, se torna possível, não apenas refletir, distanciando-se dos processos defensivos silenciadores, mas, também, constituir bases para ações transformadores no que diz respeito à organização e ao conteúdo do trabalho”.

O estudo chegou à conclusão que o trabalhar na magistratura é um emaranhado de diferentes tipos de atividades, é algo que se desenvolve no âmbito das incertezas e da necessidade de compreender o que aqueles cidadãos estão trazendo como questões, é conhecer o direito e a jurisprudência, é saber se relacionar, dentre tantas outras facetas. Laerte diz que pouco conhecemos sobre a realidade do trabalhar na magistratura. “Aquilo que geralmente se apregoa como sendo relativo ao trabalho nesta categoria não passa de estereótipos, muitas vezes coalhados de inverdades”. O que mais fica evidente são os desafios para se construir uma linha de ação dentro da vida profissional considere os valores da profissão e, sobretudo as necessidades de ação que tragam melhorias para as relações sociais e para o desenvolvimento da cultura, de um modo mais amplo. “A grande responsabilidade existente nesta profissão é que toda e qualquer ação tem impactos significativos na vida dos cidadãos, fato que aumenta em muito a responsabilidade do que fazem e que permite compreender porque ficam tão expostos na sociedade”.

Tudo isto nos leva a refletir não apenas sobre a importância de se reforçar os valores da profissão, das suas tradições e regras, da sua evolução ao longo do tempo. Isto só é possível se, institucionalmente, há espaços para que haja discussões, deliberações com relação às regras e às modalidades de ação desenvolvidas pelos sujeitos. “O risco de se isolar e, sobretudo, de se constituírem cenários propícios para o sofrimento patogênico persiste".

O pesquisador afirma que o tipo de pesquisa que desenvolveram mostra o quanto é arriscado se buscar o desenvolvimento de medidas para o trabalho e para o trabalhar. “Não se pode tudo modelizar, não há como colocar em modelos anteriormente definidos tudo o que se faz em uma profissão, os riscos de deterioração da profissão, seja lá qual for, é muito grande”. Os métodos de avaliação de desempenho precisam ser modificados, assim como os processos de “coisificação”, que se tornam “máquinas de produzir” - principalmente no que diz respeito ao funcionalismo público. “Para tanto, há que se considerar o que há de intangível, de imaterial no trabalho da magistratura e, também de outros servidores públicos, que é a construção e o reforço dos valores sociais e da cultura”, finaliza.

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