O ponto de partida do ensaio é o diálogo de João Guimarães Rosa com Edoardo Bizzarri, tradutor italiano de Corpo de baile, acerca de uma única página "intraduzível " desse imenso livro de novelas. Veremos que tal página contém a fala de um "doido", o Chefe Ezequiel, que ouve e distingue coisas incompreensíveis para os demais: a linguagem da noite. Dotado de uma percepção aguçada, ele fala uma língua estranha, de conteúdos enigmáticos, freqüentemente atribuindo outros nomes para as coisas e novos significados para os nomes, ou simplesmente criando nomes motivados por inusitadas sinestesias. Brincando com a linha tênue e arbitrária que distingue as coisas do mundo, é essa linguagem obscura que desconcerta a tradução da novela "Buriti ".
A poética da miopia, as paisagens interiores, o silêncio, a ausência de música no filme, o lastro documental e a fidelidade à estética de Guimarães Rosa são temas suscitados pelo longa-metragem “Mutum” (2007), uma adaptação da novela “Campo Geral”, do Corpo de baile (1956), mais conhecida como “a estória de Miguilim”. Veremos como o filme recria o texto literário e o próprio método de trabalho do escritor, que fazia viagens de pesquisa pelo sertão do Brasil, recolhendo elementos para suas estórias.
O levantamento das viagens, leituras e escritos de João Guimarães Rosa produzidos durante o processo de elaboração de Corpo de baile e Grande Sertão: Veredas constitui o ponto de partida desta tese. Através da análise conjunta dos documentos inéditos - diário, cadernetas de viagem, cadernos de estudos e textos inacabados - e publicações em periódicos que datam do período enfocado, identificando seus principais interlocutores e as relações que estabelecem entre si e com aqueles livros, demonstro que as cadernetas da viagem pelo sertão de Minas (1952) ocupam uma posição chave, porque articulam e atualizam suas reflexões sobre viagem e narrativa, os "povos boieiros" e a matéria épica da tradição oral. Veremos que tanto no processo de escrita das cadernetas quanto nos livros de 56, sobretudo no romance, rosa dialoga com os poemas homéricos (sobre a narrativa oral e o pensamento analógico), com Euclides da Cunha (sobre a cultura boieira e a visão de mundo dos vaqueiros), e com os viajantes naturalistas que descrevem o sertão do Brasil (sobre a viagem como procedimento narrativo e a descrição da natureza). Nesse contexto , proponho uma releitura de Ave, palavra - livro póstumo que reúne escritos de 1947 - 54, e defendo a hipótese de que os livros de 56 e a novela "Meu tio o Iauaretê" foram concebidos no bojo de um mesmo projeto de escrita que explora o pensamento analógico , a ambigüidade e o deslocamento de perspectiva para expressar aquilo que não tem voz nem contornos definidos, como o Sertão, Diadorim, a onça e a criança. Partindo de uma sólida base documental, é através de um intenso trabalho de linguagem que Rosa engendra um sertão pela via da metamorfose.