Um tema importante do romance de João Guimarães Rosa é a tentativa de se realizar um gesto fundador que erradique os conflitos do sertão. Mediante uma análise do empreendimento fáustico que, desde Adão até o herói goetheano, apresenta um caráter positivo, pressupondo um sujeito pleno, dotado de vontade, consciência, proporemos que o fator principal que move Riobaldo na realização do pacto é o indeterminismo. Seguindo essa linha, abordaremos a cisão do mito de Fausto na passagem do século 19 para o século 20, que substitui a conquista de uma obra civilizadora e progressista pelo ceticismo e a ironia. Nesse sentido, o gesto efetuado nas Veredas-Mortas, assumindo como uma de suas vertentes a extinção da barbárie jagunça, encontra após derrota dos Judas a contraparte do anti-belicismo. O velho fazendeiro Riobaldo, senhor de terras, tendo por empregados seus antigos jagunços, vive em tenso equilíbrio, ameaçado a cada instante por uma nova irrupção da maldade. Por sinal, todos os outros chefes jagunços, Medeiro Vaz, Joca Ramiro, Zé Bebelo não conseguem se apoiar em nenhum princípio fundador que potencialize os objetivos do pacto social.
No universo plurissignificativo de Grande Sertão: Veredas, a força que move o pactário não é apenas a de um sujeito que, em nível semântico, procura a obtenção de um conhecimento ou a superação do humano. Riobaldo, questionando sobre a existência de Deus e do Diabo, faz dessa dúvida o seu gesto pactual. Sob esse aspecto, a aporia impossibilita qualquer resposta ou juízo. O pacto, desse modo, se configura como esforço tradutório. Esforço que procura um possível equilíbrio entre dois pólos: o positivo e o negativo, ambos agenciadores que se expressam como linguagem. Na tentativa de encontrar Deus através do Diabo, ou vice-e-versa, estabelecese a ironia. O nada (nonada) é paradoxo por onde se tenta discutir o indiscutível. A “fala” do pactário atinge o limite do círculo hermenêutico para torcê-lo, torná-lo espiral. A possível tradução do pacto fáustico poderia ser travessia. A busca, veículo tradutório e ambivalente de um desejo indeterminado.
Vinculado principalmente, segundo o clássico estudo de Leonardo Arroyo, A cultura popular em
Grande sertão: veredas, à tradição oral, o suposto pacto com o diabo, na obra de Guimarães Rosa,
tem sua fonte escrita clássica mais antiga, no que diz respeito ao mito fáustico, na peça de teatro A história trágica do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe. Se o texto do contemporâneo de
William Shakespeare tem por base a tradução do livro anônimo, publicado em 1587, o Volksbuch,
pelo editor alemão Johann Spies, ele se insere no palco da ambiguidade: Fausto é um exemplum da
moral protestante ou sua face prometeica, como símbolo das aspirações renascentistas? No caso do
opus magnum do escritor mineiro, onde também convergem vertentes eruditas e populares do mito, este não se exila deste terreno da dúvida. Porém, se em Marlowe o contrato demoníaco é eleito como hýbris que leva o personagem à sua possível derrocada pelo concurso com Mefistófeles, em Rosa há uma desconstrução da própria ideia de pacto, em que Riobaldo, ser por excelência dividido, não exibe marcas evidentes do ritual luciferino, mas sua face fantasmática, eco do nada e do desregramento.
Guimarães Rosa costumava dizer que só se pode falar do sertão por meio do conto ou da lenda. Considerando Grande Sertão: Veredas um grande conto, defendo a importância dessa forma como um ensaio que busca a redescoberta da Terra Nova mediante a fala de um ex-jagunço semiletrado. Se nossa História não foi forte no sentido de uma contribuição filosófica, a geografia, terra dos contos, anuncia o pensar enquanto força cujo gesto fundador se baseia no poder de pactuar com o cotidiano o nascimento da Literatura.