Sala 39

Dias Felizes: o monólogo feminino

A adaptação da peça de Samuel Beckett propõe uma perspectiva feminista e é influenciada pela linguagem de HQs e desenhos animados

Gabriela Raso

Luíse Silva

Tatiana (social)/ Matheus (registro) Couto

Natalia Tiemi

Yasmin Silva

  1. INTRODUÇÃO

A peça “Dias Felizes”, apresentada no teatro Cacilda Becker nos dias 6 a 30 de julho de 2023, é baseada na obra de 1961 do dramaturgo Samuel Beckett. A apresentação foi dirigida por César Ribeiro, que também já adaptou peças como “O Arquiteto e o Imperador da Assíria”, de Fernando Arrabal.

Beckett (1906-1989) levou cerca de oito meses para escrever o texto original, que foi sua sexta peça, endereçada ao diretor Alan Schneider. Ao enviá-la, Samuel escreveu a Alan: “É um trabalho muito mais difícil que eu dei a você aqui do que qualquer outro até agora ─ tudo posicionado no fio da navalha e sem fôlego em lugar nenhum”.

A protagonista da narrativa é Winnie, uma mulher na casa dos 50 anos que está soterrada em um monte. Willie, seu marido, aparece como um personagem secundário, e fica a maior parte do tempo fora da visão da plateia. Winnie, na peça de César Ribeiro, foi interpretada por Lavínia Pannunzio, enquanto Helio Cicero interpretou Willie.

A inteira dos ingressos custava 20 reais, e a peça tinha 110 minutos de duração.

[Imagem: Divulgação/ Sympla]

A peça foi contemplada pelo “Prêmio Funarte de Estímulo ao Teatro” de 2022, no qual a Fundação Nacional das Artes avaliava projetos inéditos e concedia investimentos para a realização de doze apresentações públicas aos dez ganhadores, selecionados com base em critérios como clareza, relevância artística e trajetória dos envolvidos.

  1. RESUMO E INTERPRETAÇÕES 

Para nos aprofundarmos no conteúdo e na produção da peça, entrevistamos a atriz e diretora Lavínia Pannunzio, que protagonizou o espetáculo como Winnie, a qual, em suas palavras, representa as mulheres e sua condição em nossa sociedade:

“Ela não pode se mover e está a cada dia sendo mais soterrada pela terra, rodeada pelas cabeças das outras mulheres que estiveram na mesma situação que ela. Mesmo assim ela mantém sua rotina e cumpre com todos os costumes e padrões que se espera dela. A primeira coisa que ela faz é rezar, e só dá continuidade ao dia depois de se arrumar toda. Ela representa o devir-mulher”.

Dias Felizes não nos apresenta apenas uma história, mas todas as histórias. A protagonista, Winnie, poderia ser qualquer mulher do mundo, seu parceiro, Willie, poderia ser qualquer homem do mundo, e a miséria, de todos nós. A peça se inicia e nos apresenta a um casal bastante excêntrico, habitantes de um deserto, os dois sobrevivem completamente sozinhos em cima de um vulcão. 

A mulher, Winnie, é profundamente poética e eloquente, vestindo-se de maneira elegante, ela mostra-se bastante alegre com seu imóvel estilo de vida. Já seu marido, Willie, pode ser descrito unicamente como animalesco, de aparência desleixada, fala resumida em grunhidos e deslocando-se sob os quatro membros, ele é um polo totalmente oposto a Winnie.  “Ele vive como um bicho. Não é à toa que Winnie o chama de ‘meu rastejador’. Ele está sempre sujo, não cumpre uma rotina, passa a maior parte do tempo em um buraco”.

A peça avança focando principalmente nos monólogos de Winnie, eternamente imóvel, ela clama pela felicidade presente em sua vida e pelo amor a seu marido e as poucas vezes em que ele parece notar sua presença. Entretanto, a acompanhamos enquanto a protagonista claramente parece lutar contra repentinos acessos de tristeza, nos quais ela parece tomar consciência de sua deprimente existência. Tais momentos resumem-se pela presença da arma entre seus pertences, o revólver odiado sempre permanece presente no cenário, como se representando a consciência e constante impulso de morte de Winnie. Para Lavínia: “É uma representação de como o patriarcado e a religião monoteísta aprisionam as mulheres inclusive mentalmente. Por pior que seja sua situação, e mesmo que por vezes ela se dê conta disso, ela continua a repetir os mesmos vícios que a mantém presa, inclusive nas vezes em que ela tem a chance de mudar as coisas”.

Durante as poucas aparições de Willie, fica claro para a plateia que a relação do casal é preenchida por silêncios, inseguranças por parte de Willie e uma clara aversão de Winnie. Enquanto a protagonista demonstra grandes momentos de instável adoração entre o mais intenso ímpeto de matar o companheiro, Willie pouco parece prestar atenção nos monólogos da esposa, preferindo dormir e ignorá-la. “Como Willie pode se locomover, Winnie teme que ele possa cansar-se dela e a abandonar a qualquer momento. Essa possibilidade é tão real que ela economiza seus assuntos para garantir que ela sempre vai ter algo para falar com ele”. Tais ações despertam uma grande insegurança em Winnie, que frequentemente o questiona sobre o amor que ainda sente por ela, ou se ela já não é mais tão bonita quanto quando se conheceram. 

A peça se aproxima do fim e Winnie parece cada vez mais enterrada no vulcão, nos dando uma sensação cada vez maior de aprisionamento. Ela continua com suas reflexões e principalmente com a preocupação sobre o novo desaparecimento de Willie, que apenas surge no fim da apresentação. Surpreendendo Winnie e o próprio público, pela primeira vez na peça, ele olha nos olhos de Winnie e parece tentar alcançá-la no topo do vulcão. A esposa entra em polvorosa, acreditando estar presenciando um dos raros acessos de amor do esposo, entretanto, torna-se claro para a audiência que Willie não está declamando amores para a esposa, mas sim, tentando alcançar o revólver. Por fim, com um grito final de Willie, a peça se encerra e o casal retorna para sua imobilidade. 

A peça é subjetiva o suficiente para abrir caminho para diversas interpretações, dependendo apenas do olhar do público, entretanto, sob um olhar geral, ela nos passa uma mensagem sobre os estereótipos de gênero e seus resultados em uma sociedade. Winnie nada mais é que a personificação do feminino e o resultado de todos os estereótipos e papéis de gênero impostos a ela: romântica, filósofa e permanentemente presa. Enquanto isso, Willie seria a pura representação do masculino influenciado pelo patriarcado: grosseiro, animalesco e, ainda assim, livre. “Esse é um problema muito maior, que não afeta só um ou outro casal. Isso é um sistema, algo que foi sendo construído por milênios, e mesmo com as conquistas que alcançamos, ainda há muito o que ser feito”… “Quando eu comecei a conhecer pessoas trans, eu pensei ‘é isso!’. Eu acho que as pessoas trans, por enfrentarem todas as normas impostas, são as que mais tem capacidade de derrubar esse sistema”. Os dois encontram-se aprisionados em suas permanentes condições e padrões sociais e, principalmente, em uma coexistência que nada faz além de os condicionar a uma eterna auto destruição e ataque mútuo.

Como dito, esta peça não é apenas sobre a história de Winnie, mas sobre as histórias de várias mulheres, as quais são transmitidas através das recordações da protagonista: “Algumas de suas memórias são pessoais, outras são histórias de pessoas que ela conheceu ou inventou, nem ela sabe ao certo; mas dizem muito sobre como é difícil ser mulher: Ela conta uma história de uma menina que tinha uma boneca, e que depois de despir ela e guardar na gaveta, de algum jeito um rato passa pelas coxas dessa boneca. Isso é um abuso. Esse rato é o que: uma mão, um pinto? Independente, ela conta sobre uma violência sexual sofrida por uma menina”, explicou Lanívina.

  1. RELAÇÃO COM O TEORIAS DA COMUNICAÇÃO

Através da peça várias interpretações são possíveis, com isso, a aplicação de diferentes teorias da comunicação para o entendimento de “Dias Felizes” torna a experiência do teatro ainda mais completa. 

Winnie, uma mulher presa, não apenas fisicamente, mas mentalmente a estereótipos sociais de uma mulher reflete não apenas os ideais preconceituosos e limitantes, mas também disseminação desses ideais. O jornalismo carrega em si um teor estereotipado, mesmo que velado, e essa reprodução discriminatória penetra a sociedade profundamente.

As novas tecnologias de comunicação, claro que permitem o combate a tais pensamentos, porém, também é terreno fértil para a manutenção e expansão dos mesmos. A Escola de Frankfurt procurou entender e criticar esse empecilho criado pelo uso de meios tecnológicos para se comunicar. 

De acordo com os teóricos alemães a cultura sempre representou uma fuga do real, mas quando esta é transmitida através de uma tecnologia, como a televisão, o cinema, o rádio, perde-se a neutralidade e realidade por trás de uma obra de arte, mantendo-se a alienação. Traçando um paralelo, pode-se enxergar uma Winnie presa àquilo que chega a ela de forma distorcida e que a leva a se contentar com seu modo de vida dentro de padrões. 

Os teóricos da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Herbert Marcuse, destacaram que a mulher era frequentemente retratada como um objeto de desejo e satisfação masculina na cultura de massa e na indústria do entretenimento. Eles criticaram essa objetificação como uma forma de reforçar os estereótipos de gênero e limitar a autonomia e a liberdade das mulheres, assim como a peça retratou a personagem principal em um dos momentos se martirizando por não ser mais desejada pelo seu marido e acaba culpando a sua própria idade.

Além disso, a Escola de Frankfurt examinou as estruturas familiares e as expectativas sociais impostas às mulheres. Eles argumentavam que as mulheres eram frequentemente confinadas aos papéis tradicionais de esposas e mães, limitando assim suas oportunidades e sua participação nas esferas públicas da sociedade. Essa restrição à esfera doméstica foi vista como uma forma de controle social que perpetuava as desigualdades de gênero. Fazendo uma referência a isso, Winnie era a única personagem que não saia do local de onde estava, ela ficava dias no alto da montanha apenas cuidando da sua beleza e fazendo companhia para ele, o que explica a sua solidão extrema quando ele saía de casa e ela não poderia fazer o mesmo.

Outra teoria que se encaixa na situação exibida na peça é a da Nova Esquerda Alemã. Ao contrário da Escola de Frankfurt, essa outra corrente teórica defende que os meios de comunicação em massa possuem potencial emancipador que atua na mentalidade social de uma população. A chamada “Indústria da Consciência” diz que é possível moldar a consciência de uma população a depender de como e o que veiculam os meios de comunicação. 

Novamente, relaciona-se a figura de Winnie, afinal a prisão em que ela se encontra ultrapassa barreiras físicas e, também, sua cabeça, sua consciência, exibindo para o espectador um domínio completo da existência e compreensão do mundo de uma mulher. 

Referências bibliográficas

BRASIL. Ministério da Cultura. Edital Prêmio Funarte de Estímulo ao Teatro – 2022. Ministério da Cultura, 18 abr. 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/funarte/pt-br/editais-1/2022/edital-premio-funarte-de-estimulo-ao-teatro-2013-2022>. Acesso em 15 jul. 2023.

CAVALCANTTI, Bruno. Cesar Ribeiro arquiteta montagem de clássico de Beckett com Lavínia Pannunzio e Hélio Cícero. Observatório do teatro, [S.I.], 6 de dezembro de 2021. Disponível em: <https://observatoriodoteatro.uol.com.br/noticias/cesar-ribeiro-arquiteta-montagem-de-classico-de-beckett-com-lavinia-pannunzio-e-helio-cicero>. Acesso em 15 jul. 2023.

Dias Felizes. Sympla, 2023. Disponível em: <https://www.sympla.com.br/produtor/diasfelizes>. Acesso em 15 jul. 2023

Grupo Garagem 21 estreia versão feminista de Dias Felizes, de Samuel Beckett. Info Teatro, [S.I.]. Disponível em: <https://infoteatro.com.br/peca/dias-felizes/>. Acesso em 15 jul. 2023.

MCEVOY, William. An introduction to Happy Days. British Library, [S.I.], 7 de set. de 2017. Disponível em: <https://www.bl.uk/20th-century-literature/articles/an-introduction-to-happy-days>. Acesso em 15 jul. 2023.