As aventuras do bruxinho criado por J.K. Rowling entretêm milhões de pessoas ao redor do mundo até hoje, seja em seu formato original de livro ou em sua adaptação para o cinema. No entanto, Júlio Pancracio Valim defendeu, em sua dissertação de mestrado, que a saga pode fazer muito mais do que apenas divertir.
Um dos fatores que levou o pesquisador à escolha de seu tema foi “o impressionante sucesso de público” da saga. Ele explica: “Era para mim um dado relevante a formação de centenas de milhões de pessoas ao redor de todo o mundo por meio da fruição dessa estória – o que ficava mais intrigante quando se considera que havia em alguns espaços um debate sobre a crise da leitura entre jovens e adolescentes.”
Valim parte de uma premissa de educação que diz que o aprendizado ocorre “a todo tempo e de maneira estética”, por ser ele uma necessidade e, consequentemente, depender das experiências pessoais. Assim, excedendo as compreensões pedagógicas mais conservadoras e tecnicizantes, acredita que o extracurricular, ou seja, aquilo que se aprende fora da sala de aula ou além dos conteúdos obrigatórios, contribui de maneira significativa para a formação dos indivíduos.
Sua pesquisa está dividida em três partes. Na primeira delas, Valim propõe uma reflexão acerca da arte-educação, com base no tema. “Assistir aos filmes do jovem bruxo seria algo instrutivo? Traz algum aprendizado? Como e por que isso acontece? Ao que parece, aqueles que acompanharam a série têm suficiente certeza sobre aprendizados vividos no decorrer da estória, ainda que, por quaisquer motivos, se resista ou ignore essa constatação.”
Valim comenta sobre o desprezo que é comum que se dê à potência educativa da arte. Além disso, apresenta exemplos de passagens da saga que incitam reflexões sobre aspectos como a relativização do bem e do mal ou as relações professor-aluno e mestre-discípulo. “Por certo, não aprendemos a produzir feitiços e magias, mas descobriremos sentimentos, maneiras de vivenciar sentidos de responsabilidade, justiça, amor, amizade, medo, coragem, angústia, escolha, e, nesse ato, crescemos, ao compreender o mundo, o outro e a nós mesmos.”
O pesquisador reforça, ainda, a importância da experiência. Ao mesmo tempo em que ela norteia os interesses, a visão de mundo e a forma de aprender de uma pessoa, é também ressignificada a partir de cada nova experiência. “Nos transformaremos pelas impressões significativas geradas pela arte, cuja fruição proporciona ao indivíduo a habilidade de notar sua própria condição, sua forma singular de interação com o mundo”, diz. “Não pode haver conhecimento sem sentimento, já que é a partir da experimentação individual que se constrói um significado para essa própria experiência.”
O segundo capítulo da dissertação propõe uma interpretação mitohermenêutica da obra, ou seja, a identificação de seus elementos míticos/mitológicos e a compreensão do todo levando-se em conta o poder e o efeito de tais símbolos. Tendo a narrativa de Harry Potter um carater heroico e contemplando as etapas de separação, iniciação e retorno que caracterizam o mito, tal estudo pode ser realizado sem grandes adaptações.
Um exemplo interessante é a leitura dos termos originais dos quais derivam os conceitos de “bruxo” e “trouxa” (pessoa que não é bruxa) em português. São eles: “wizard” e “muggle”, respectivamente. Na língua inglesa, há muitas outras palavras de sentido aproximado, e que provavelmente seriam traduzidas da mesma forma. No entanto, somente wizard deriva de “wise” (sabedoria), e somente muggle era usada frequentemente em se tratando de máquinas. Ou seja, somente o wizard tem o saber imposto a ele, ainda que desconheça que sabe, e somente o muggle desconhece a mecânica, os mecanismos do mundo.
Há ainda outros símbolos, outras palavras e outras referências, como a cobra (Nagini), o raio (da cicatriz de Harry), os nomes de pessoas, feitiços e lugares, o domínio seguro (Hogwarts), o domínio inacessível (Floresta Proibida).
Concluindo o trabalho, a terceira e última parte versa sobre os pressupostos filosóficos que o norteiam e embasam, dentre os quais é central o conceito de “imaginário”, formulado por Gilbert Durand. O autor, ao dizer ser a imaginação a “faculdade humana responsável pela produção de toda forma de significação”, o coloca não só como anterior, mas como superior, em abrangência e enquanto instância, à razão.
A compreensão da série Harry Potter como um mito é apenas uma das muitas formas de se apresentar seu papel formador. Sabendo-se que os mitos são fruto de um grupo com determinados valores, crenças, leis e costumes, é facilmente perceptível o impacto que a obra possui em um leitor desse ou de outro agrupamento, as lições que pode passar e os questionamentos que pode provocar.
Por isso, Júlio conclui: “Harry Potter nos motiva a requalificar nossa experiência da vida, do outro e das coisas, extrapolando a clausura do entendimento e do individualismo, e, nesse movimento, nos recondiciona em nossa relação com o universo, nos ensinando que viver um mundo repleto de magia depende de nossas escolhas.”