ISSN 2359-5191

18/11/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 112 - Educação - Escola de Comunicações e Artes
"Negociação cultural" forma leitores protagonistas
Trocar experiências e abordar diversas linguagens são duas das ferramentas do processo de apropriação do escrito
Livros, letras e a interminável coleção de histórias. | Fonte da imagem: www.escolakids.com.

    Você consegue ler este texto? Compreendê-lo? Sim? Não tem grandes problemas ao interpretar uma obra? Em caso de respostas afirmativas, saiba que está, portanto, em uma posição privilegiada se for levada em conta a quantidade, infelizmente graúda, de indivíduos que não possuem contato com a cultura escrita. Entenda: cultura escrita não é apenas o termo desenhado no papel ou na tela; trata-se do que é englobado tanto pelo escrever quanto pelo ler.

    Analfabetos, seja no primeiro sentido da expressão ou os denominados “funcionais”, existem aos montes na sociedade brasileira. Há quem, apesar de não ser agrupado em nenhuma das categorias mencionadas, também olhe desconfiado para as letras. As palavras, corriqueiras na vida de alguns, representam um universo longínquo e enigmático na realidade de outros. Envolta nessa problemática, Amanda Leal de Oliveira analisou, em seu doutorado, o conceito de “negociação cultural”, o qual orienta processos de mediação voltados à apropriação do escrito. Para isso, utilizou três exemplos concretos de lugares ligados à troca de conhecimento: o Centro Educacional e Cultural Kaffehuset Friele, localizado na zona rural de Minas Gerais; a Estação do Conhecimento Einstein-Paraisópolis, em Paraisópolis, a segunda maior comunidade paulistana; e, por fim, a Biblioteca Pública Louise Michel, situada em um bairro periférico de Paris, na França. A pesquisa enfocada foi escolhida pelo Programa de Pós-Graduação de Ciência da Informação, da Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), como o melhor trabalho em 2014, indicada ao prêmio Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).

    “Cada pessoa é um mundo”, salientou a escritora Clarice Lispector no conto Gertrudes pede um conselho. Raul Seixas alertou o amigo Pedro em uma música: “Cada um de nós é um universo”. Mundo, universo ou qual seja a denominação que preferir, fato é que cada indivíduo carrega uma bagagem de vivências, que incluem itens culturais. A história do sujeito, os diversos acontecimentos que permearam a sua existência, além do contexto em que ele está incorporado, são fatores que influenciam no modo como a cultura escrita é encarada. Nem todos, por exemplo, nascem em um ambiente no qual o ato de ler tenha presença e seja incentivado. “A relação com a leitura não é inata; é uma experiência cultural que precisamos construir”, afirma Amanda.

    Nessa esfera, a ideia de “negociação cultural”, pensada pela estudiosa desde o trabalho anterior feito no mestrado, é necessária. Segundo a pesquisadora, esse conceito-estratégia é “um aspecto pouco evidenciado em trabalhos de leitura e de apropriação de leitura”. O discurso mais comum no tratamento desse tema é unilateral, como se o canal leitor-livro fosse direto, não lidasse com ruídos advindos dos conhecimentos gerados outrora e dos variados causos pessoais; como se os cidadãos não pudessem ter interpretações diferentes acerca de um certo texto. Eis um informe: ninguém lê uma mesma publicação de forma exatamente igual, vírgula por vírgula. O vínculo entre indivíduo e escrito é um encontro e, muitas vezes, um confronto entre a memória e o que é oferecido pela mensagem. A negociação proposta é, em suma, a aliança entre a experiência do leitor e a expressa nos vocábulos. Não é um sistema de assimilação, mera incorporação de dados, muito menos algo imposto. Vale-se da criação de algo novo: no misto do sujeito com o volume, tem-se um sistema que transforma os lados participantes.  


Obras, por vezes, são repletas de surpresas e descobertas. | Fonte da imagem: www.1jour1actu.com.

 

    Mediar e apropriar

    Posto que não se nasce sabendo lidar com a cultura escrita, a tarefa de mediar é necessária. Os mediadores, de acordo com Amanda, podem ser pessoas, vivências e espaços, os quais são mais atraentes se os livros estiverem organizados e acessíveis, áreas em que o público é aproximado dos exemplares. Várias escolas já venceram o obstáculo do acervo de obras, porém nem sempre sabem fazer uso desse conjunto. Algumas dúvidas recorrentes são: deixar os encadernados nas mãos das crianças? Como trabalhar o receio das unidades rasgarem ou sujarem? “Estamos começando a vencer essa barreira que é o acesso aos livros, mas a mediação é fundamental para construirmos sentido, significado e relação com eles”, pontua a estudiosa. Com o auxílio de mediadores, a pessoa toma consciência da gama existente no meio literário e, assim, descobre os próprios gostos.

    Nos dias atuais, uma considerável parcela das bibliotecas está no estágio do acesso. Por vezes, o material existe, contudo não é o bastante. Precisa-se arquitetar maneiras de trazer mais indivíduos para o meio escrito. Para tanto, não se deve pensar que todos podem ser encaixados no modelo de “leitor ideal”, aquele que se adapta a um método de difusão, um sujeito que devora os clássicos da literatura e fica confortável com zonas de leitura tradicionais, onde o silêncio impera entre cadeiras e estantes. Estar aberto ao novo é o mote para que um mediador tenha sucesso: reconhecer que os seres são distintos e, consequentemente, nutrem preferências dessemelhantes. “Há novos modos de ler, de escrever, de frequentar uma biblioteca”, alerta a pesquisadora. Incluir e não excluir é o lema de um procedimento de apropriação cultural, no qual os agentes implicados constroem vias de múltiplas mãos de troca. Desse jeito, florescem protagonistas dentro de uma experiência cultural frutífera, ao contrário da formação de simples depósitos de saberes e histórias, não estimulados a exprimirem colocações extratextuais. Criatividade opondo-se ao imperativo em prol de novas práticas culturais emergirem.



 


Bibliotecas abrigam personagens ficcionias. | Fonte da imagem: biblioactivaler.blogspot.com.br.


    Concepções materializadas

    Amparada nos pensamentos abordados nos parágrafos acima, Amanda Leal de Oliveira acompanhou práticas que consideram os aspectos por ela defendidos: “Procurei identificar experiências em que o foco fosse a formação de leitores, a apropriação da leitura, mas que os próprios projetos tivessem se modificado durante esse processo”, justifica. No Centro Educacional e Cultural Kaffehuset Friele (Poços de Caldas), Amanda ficou por sete anos. O lugar foi planejado para ser agradável, entretanto permanecia vazio. Os habitantes da zona rural não o viam como uma fonte de momentos prazerosos; associavam o ambiente a situações de humilhação e a uma hierarquia entre cidade e roça, escala na qual a cultura urbana teria mais valor. “Uma biblioteca na fazenda acabou sendo reconhecida pelos moradores como mais uma instância de imposição”, relembra a estudiosa.

    A partir dessa rejeição, o Centro Cultural reviu a sua estruturação e apostou em mudanças que o conectasse com a realidade local. Abertura do espaço durante o período noturno e atenção para expressões da oralidade foram pontos adotados. Rodas de prosas foram introduzidas. Já em Paraisópolis, onde a pesquisadora passou dois anos, a Estação do Conhecimento é de responsabilidade do Instituto Israelita Albert Einstein. Desde que foi fundada, existe um questionamento acerca do papel por ela exercido na comunidade. Como chegar até a população? Com a assistência de professores do Colabori (Colaboratório de Infoeducação da ECA/USP), a biblioteca considerou o contexto no qual está adicionada. “Não houve um projeto pronto, definido e, sim, uma construção coletiva a partir da experiência com aqueles leitores”, conta Amanda. Os dois casos tupiniquins demonstram que “o incentivo da leitura não estava encerrado nele mesmo”.

    Engana-se, pois, quem acredita que a “negociação cultural” e as suas ramificações são discutidas só no país verde e amarelo. Em território francês, a estudiosa teve uma estada de um ano. Lá conviveu em uma biblioteca pública, Louise Michel, na periferia parisiense. Receptora de inúmeros imigrantes e cidadãos sem recursos financeiros, a área nutria a inquietação de formar novos leitores. Na busca por sempre reexaminar a sua organização, o ambiente aplicou um programa musical diversificado, exercícios de registro de letras de canções, incorporando outras linguagens além do ler. A feitura de carteirinhas, medida que pode parecer banal, foi outra implementação bem-sucedida.


Leitura: uma porta para descobertas. | Fonte da imagem: bibliotecaearte.blogspot.com.


    Compor diálogos com diferentes indivíduos, os quais carregam mil e um relatos, em uma composição coletiva em prol da apropriação por todos da cultura escrita. Reconhecer o saber no outro, promover trocas e procurar por relações mais profundas com os sujeitos, os livros e as conjunturas. “Estamos construindo um novo lugar na leitura e na escrita, reconstruindo um protagonismo cultural”, arremata a pesquisadora.

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