Estudo da obra Corpo de baile, de Guimarães Rosa buscando perceber como a dispersão das personagens da primeira estória, seus reagrupamentos nas novelas intermediárias e a reintegração final, formam as ranhuras que amarravam o conjunto. Além de analisar como esses elementos de composição, que sustentam a unidade do livro, têm também um fundo ideológico, ou seja, apresentam uma visão da história e uma concepção da vida e do mundo.
O episódio do Grande Sertão: Veredas que se passa na chamada “Fazenda dos Tucanos”, do meu ponto de vista, inicia de fato a segunda parte do romance, a épica. É quando se torna mais intenso o seu tempo de guerras e põe em cheque a formação do herói. Ele toma consciência de que precisa se superar, o que o acabará levando para a tentativa do Pacto. Isto acontece depois da morte de Joca Ramiro. O grupo de jagunços ao qual pertenciam Riobaldo e Diadorim, depois de passarem a ser comandados por Zé Bebelo, se estabelece numa Casa-Grande recém-abandonada, onde são encurralados pelo bando do Hermógenes e Ricardão. De perseguidores em busca da vingança da morte do antigo chefe, Joca Ramiro, eles são sitiados pelos seus executores. É um dos momentos mais agudos do livro, que culmina com a matança dos cavalos - ato aparentemente gratuito, mas de extrema crueldade, que talvez só sirva para revelar o grau de ferocidade dos opositores. Os embates entre os bandos mostram como será renhida a luta entre eles e a quantas o de Riobaldo e Diadorim terá que passar para realizar o seu intento de vingança. Isto compõe a camada épica da narrativa, a mais visível. No entanto, subterraneamente, desenvolve-se uma outra trama, agora dramática, como uma sub-história, porém como o seu núcleo mais efetivo: o embate entre Riobaldo e Zé Bebelo. É nesse embate que se coloca para o herói a questão incontornável do Poder e da Chefia, quando o herói toma consciência de que não poderá mais ficar alheio a eles.
O trabalho procura mostrar como Guimarães Rosa, nos seus três primeiros livros publicados, Sagarana, Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, integra às duas camadas mais lidas e estudadas dos seus textos, a empírica e a mítico-simbólica, uma terceira, alegórico-histórica. Com ela, o autor procura representar, estilizadamente, algumas constantes da nossa vida social e institucional. Ela foi construída principalmente a partir das novas interpretações históricas que começaram a aparecer com as crises mais profundas vividas pela República, já nos inícios da década de vinte do século passado. Nela, Guimarães explora as tensões criadas pelo embate entre forças ordenadoras e desordenadoras - reeditando aqui a luta entre barbárie e civilização seja no plano da vida privada, seja no da vida pública. Desse modo, o autor norteia também a sua estratégia literária na busca de uma representação do país, na medida em que este participa das mesmas tensões universais resultantes da luta entre a ordem e a desordem, a barbárie e a civilização, o arcaico e o moderno. Cabe lembrar que essas três camadas de textos não foram vistas separadamente, mas nas suas articulações, composicionais e significativas. Um segundo objetivo do trabalho é o de revelar como esses livros acabaram se imbricando um no outro, podendo os dois primeiros serem vistos como uma espécie de estudos preparatórios para o que seria o seu resultado sinfônico maior, que é o Grande Sertão: Veredas. No primeiro e no segundo capítulos, o trabalho mostra como um livro dependeu do outro para chegar ao que chegou, seja no plano das personagens - Riobaldo como o resultado da junção de Lalino eLélio -, seja no dos motivos e temas - por exemplo, os paradigmas amorosos desenvolvidos no Grande Sertão, já estão incubados em Sagarana e têm os seus primeiros ensaios em Corpo de Baile. Como orientação metodológica, é preciso acrescentar, que só foi ) possível chegar a esses resultados, na medida em que se deu atenção às relações dessas estórias com o período histórico em que elas se passam na sua maioria, o da Primeira República, e se considerou o momento em que foram escritas, durante os anos de 37 a 54 (neste ano o autor já anuncia Corpo de Baile e Veredas Mortas, nome original do Grande Sertão), período conhecido como o do getulismo ou varguismo, quer dizer, momento também de grandes instabilidades e indefinições da nossa vida político-institucional.