Jornaleca

Ao fim do arco íris, poderia ter um casório

CULTURA

A chegada de junho traz consigo o inverno. O frio congelante que faz em São Paulo é intensificado dentro da Cidade Universitária, por causa da grande quantidade de vegetação. Normalmente, ela me agrada muito mas, durante esse período, me causa até mesmo arrepios. Mesmo assim, talvez esse frio combine com as festividades da época, que são as minhas favoritas! Nas festas juninas, eu me sinto completo e genuinamente feliz. 

As comidas típicas, as roupas, as danças e principalmente a decoração me encantam. O revoar das bandeirolas coloridas enchem os meus olhos e conseguem me emocionar. Reflito sempre sobre como um país pode ter uma cultura tão linda e rica, que se consagra e se mantém por gerações, que conseguem mostrar a multiplicidade de um país tão grande quanto o Brasil. 

Depois de expressar tanto meu gosto cultural, talvez esteja na hora de me apresentar. Sou Renato, mineiro de alma, coração e nascença que veio para São Paulo para realizar o sonho de fazer faculdade na USP. Carrego no peito uma saudade imensa da minha casa, da minha família, dos meus amigos e dos meus amores. Em festas juninas, o calor da fogueira me aquece e as bandeiras sempre me lembram das bandeiras que carrego, que representam quem eu sou. 

A verdade é que quase todo mundo que, assim como eu, deixa uma cidade pequena para tentar a vida na maior capital do Brasil vem cheio de expectativas. Apesar de amar minha terra natal, mudar para cá nunca foi só sobre a USP. São Paulo parecia também uma chance de me conhecer e de sentir — talvez pela primeira vez na vida — a liberdade de ser quem sou. Apesar do muito amor que recebi daqueles que me cercavam, não nasci no local mais aberto do mundo em relação a minha sexualidade. 

Me reconheço como um menino gay desde os 12 anos e nunca tive coragem de beijar nenhum namoradinho sequer nas praças da minha cidade. Acho que, para além das boas memórias, o clima junino também me traz alguns fantasmas da infância e me faz perguntar: será que o problema era mesmo minha cidadezinha do interior, ou lugar nenhum no mundo é livre da discriminação? 

Ontem de noite, vim para um arraiá aqui da faculdade, que tava bem bonito. Tinha comida boa e uma quadrilha pra lá de talentosa, mas que era igualzinha às que me deixavam meio triste e acanhado quando criança: cavalheiros cumprimentando damas e, com elas, contracenando até o ponto máximo da dança, o casório entre noivo e noiva. Entre menino e menina. Desde os meus tempos de garoto, lembro de achar aquilo tudo meio chato e, mesmo que não colocasse nestas palavras, excludente demais. Eram meus melhores amigos do mundo inteiro se divertindo ali, e eu simplesmente não conseguia me sentir parte de nada… Minha festa favorita virou quase um flashback de guerra, sabe? Isso faz a gente pensar. 

Tropecei nas memórias e no tecido branco. Os professores, os pais e as mães me rodeavam. Mais perto, a fileira de meninas na flor da idade, banguelas e sardentas pelos mesmos lápis de olho que tornavam os meninos na puberdade em cavalheiros bigodudos, remexendo-se ansiosos perto delas. Senti meus pés — grandes demais para o salto emprestado — se movendo em direção ao coração da comemoração. Ali estava, diante do altar, sob o céu de bandeirinhas. Se meus pensamentos estivessem menos turvos, talvez teria me lembrado de Manuel Bandeira, como na aula mais cedo:

“Quando ontem adormeci

Na noite de São João

Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala

Vozes, cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.”

As palmas e biribinhas me arrancam do sonho e me vejo de volta na velha plateia do casamento caipira, assistindo a moça e o rapaz selarem a união enquanto eu mastigava pipoca do assento de onde nunca havia saído. Foi então que Bandeira terminou:

“No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos

Apenas balões

Passavam errantes”

Para eles, as rosas, os anéis de plástico e a chuva de arroz. Para mim, sobram as memórias do devaneio:

“Onde estavam os que há pouco

Dançavam

Cantavam

E riam

Ao pé das fogueiras acesas?”

Alicia Matsuda

Davi Madorra

Pedro Morani

Revisão: Julia Alencar e Lara Soares

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Universidade de São Paulo - USP | Escola de Comunicações e Artes - ECA | Departamento de Jornalismo e Editoração - CJE | Disciplina: Conceitos e Gêneros do Jornalismo e suas Produções Textuais | Professor: Ricardo Alexino Ferreira| Secretária de Redação: Lara Soares | Editores: Nicolle Martins (Cidadania), Sofia Zizza (Ciências), Julia Alencar (Cultura), Gabriel Reis (Diversidades), Nícolas Dalmolim (Educação), Artur Abramo (Esportes) e João Chahad (Local).

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