ISSN 2359-5191

21/02/2014 - Ano: 47 - Edição Nº: 133 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Arquivos da Cúria de São Paulo revelam perseguição religiosa no Brasil do século 18
Documentos da Igreja contextualizam religião, língua e sociedade da época

1.2.5 Leonor (1771) – São Paulo. Leonor de Siqueira e sua filha Ana Francisca são acusadas de realizar feitiçarias para transformar Manoel José Barreto, marido de Anna Francisca, em pateta”.

O excerto, retirado de arquivo da Justiça Eclesiástica de São Paulo datado de 1771, poderia soar, nos dias atuais, como uma espécie de anedota ou brincadeira – mas provavelmente custou, aos réus, o confisco de todos os seus bens. Ou até mesmo suas vidas.

Esta é uma das conclusões a que chegaram os pesquisadores Marcelo Módolo, Helena de Oliveira e Nathalia Fernandes, integrantes do Grupo de Morfologia Histórica do Português da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), ao analisar documentos provenientes da Justiça Eclesiástica da Arquidiocese de São Paulo.

O grupo obteve acesso, por meio da Cúria de São Paulo, a um rico acervo que auxiliará no processo de reconstituição de episódios sombrios e pouco divulgados da história nacional. “Os arquivos relativos a esse período, datados de 1739 a 1771, pouco foram estudados e apresentam um grande potencial de pesquisa. Eles estão sendo transcritos e deverão ser editados em breve”, afirma Marcelo Módolo.

Os documentos mostram processos instaurados contra cidadãos sob a alegação de feitiçaria, que levam à luz algumas das reverberações do Tribunal do Santo Ofício no Brasil. “Na sua grande maioria, são processos que ligam escravos afro-descendentes a práticas que não se encaixam no catolicismo de então. Todas estas eram considerados bruxaria”, conta o pesquisador.

A Justiça Eclesiástica e o Tribunal do Santo Ofício

Os documentos obtidos permitem traçar uma visão mais clara do papel das instituições religiosas em São Paulo e suas ligações com a Igreja europeia.

O Tribunal do Santo Ofício, criado na Europa em 1542, como forma de lidar com as violações de preceitos da fé católica e impedir o avanço de outras seitas religiosas, teve influência no Brasil do século 18 (de quando são datados os documentos). Embora o país não possuísse uma presença e estrutura física do Santo Ofício, era um Estado extremamente católico e cujas causas religiosas permeavam a vida civil da população.

“Os costumes e, principalmente, as ofensas contra a religião católica, eram uma questão da Justiça Eclesiástica, e não da Justiça comum”, diz Nathália Fernandes. “Hoje o Estado é laico e há liberdade religiosa, mas, à época, a Igreja contava com todos os aparatos do Estado para fazer suas investigações e interrogações”.

A Justiça Eclesiástica funcionava como um braço do Tribunal do Santo Ofício. Se julgasse haver indícios de prática ofensiva à religião, enviava os casos para julgamento em Lisboa – de onde, segundo constam os documentos, não recebiam respostas sobre o futuro dos processos, tal era a natureza secreta desses.

Sob a influência das Ordenações Filipinas, um compêndio legislativo que, dentre outros, previa crimes contra a Igreja e que vigorou no Brasil e em Portugal no século 18, muitos casos de ‘afronta e ofensa à fé cristã’ foram julgados. “Aqui, no Brasil, a feitiçaria ganhou um colorido muito grande, pois todas as questões ligadas às praticas religiosas autóctones e africanas acabaram entrando em pauta. Mas a adivinhação, invocação de espírito – e, em suma, tudo que não era explicado pela religião católica – acabava sendo classificado como bruxaria também”, ressalta Nathalia. “Quase sempre os réus eram mulheres e negras, e as testemunhas de acusação, homens. A acusações baseavam-se, sobretudo, em um ‘ouvi dizer’, como relatam os documentos. E a chance de absolvição, por mais que não houvesse provas, quase inexistia”.

Estudos filológicos e linguísticos

Os arquivos da Cúria apresentam-se também como uma rica fonte de estudos sobre a língua portuguesa no Brasil.

“Os documentos escritos correspondem a um período pseudoetimológico da língua em solo nacional”, afirma Helena de Oliveira. “O que havia era micronormas, orientações para se escrever de determinadas maneiras, estipuladas por algumas casas tipográficas que destoavam entre si”.

Isso foi o que revelaram seus estudos sobre a acentuação, por exemplo, da palavra ‘escrivão’, que é também encontrada escrita como ‘escrivam’ nos arquivos. “Os documentos eram redigidos por vários escribas, e cada um parece seguir a sua própria ‘lógica ortográfica’. Eles nos mostraram que o ‘m’ era mais utilizado, em detrimento do diacrítico (acento) til. Mas nota-se que ainda não existia um regramento geral formalizado para a acentuação. A forma ‘escrivão’ só será oficializada e instituída a partir do século 19”, completa.


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