ISSN 2359-5191

03/10/2014 - Ano: 47 - Edição Nº: 68 - Sociedade - Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas
Transtornos alimentares são vistos por pesquisadora como fenômenos sociais complexos
Marisol Marini, em dissertação de mestrado, discute bulimia e anorexia como questões de âmbito social, não apenas individual
Saint Hoax.

“Eu usava calça 36 e... a calça era larga... ficava com o osso saltado. E eu não me achava magra...” (Mônica, 23 anos, em entrevista a Marisol Marini).

Frases como a de Mônica já não são incomuns em nossos dias. O desejo de se enquadrar em padrões valorizados socialmente muitas vezes se confunde com uma verdadeira obsessão pela magreza, o que pode contribuir para uma relação distorcida com a imagem do próprio corpo e levar ao problema dos transtornos alimentares.

Infelizmente, ainda há muitos tabus e preconceitos ligados a este tema, o que não contribui para o seu esclarecimento. A antropóloga Marisol Marini, em dissertação de mestrado intitulada “Diário de peso: saberes e experiências sobre os transtornos alimentares”, buscou um enfoque que caminhasse na contramão das visões estigmatizantes. Ela quis abordar os transtornos alimentares a partir de uma análise desnaturalizante do corpo, a fim de evidenciar, como ela afirma, que “os padrões de beleza e a valorização da magreza são historicamente constituídos e têm significados particulares na atualidade”.

A antropóloga considera que “o corpo ocupa uma dimensão central na nossa sociedade (nas chamadas sociedades ocidentais contemporâneas) para o processo de constituição de subjetividades e identidades pessoais”, o que justifica seu lugar central na discussão antropológica. Para ela, “com a invenção da dieta (em seu significado moderno), a reflexividade sobre o corpo se acelera, na medida em que se torna parte da ação adotada por indivíduos e grupos, responsabilizando o sujeito pelo seu desenvolvimento e sua aparência”. Dessa forma, a antropologia se torna um campo importante de observação das relações que se tem com o corpo, já que contribui para a problematização das práticas e intervenções sobre ele.

Marisol realizou sua pesquisa em uma instituição psicanalítica (cujo nome ela omite na dissertação, a fim de preservar os sujeitos envolvidos), na qual ela acompanhou as atividades realizadas por especialistas em transtornos alimentares e teve acesso a pacientes com quem conversou e a partir das quais ela pôde refletir sobre a constituição do corpo e a subjetivação. Como pôde perceber, os transtornos alimentares são mencionados como decorrências de padrões de beleza e consumo, noções de feminilidade, juventude, saúde, elegância, bem-estar e felicidade. As nutricionistas, em sua prática, observam que o gatilho para os transtornos quase sempre é uma dieta, incitada por um comentário, um olhar externo a respeito do corpo e um sentimento de profunda inadequação da sua forma física. O bombardeio de mensagens relacionando a magreza a um padrão de beleza e felicidade e a profunda pressão para o emagrecimento contribuem de forma direta para que as pessoas adentrem o universo dos transtornos alimentares. 

 

Diário alimentar: monitoramento ou obsessão?

No decorrer de sua pesquisa, Marisol constatou algo interessante acerca de uma técnica de tratamento dos transtornos, que também se constitui uma prática altamente difundida por revistas e sites sobre o tema do corpo e da beleza. Muitas vezes, para tratar de pacientes com anorexia e bulimia, sobretudo as mais graves, que precisam ganhar peso, é utilizado o diário alimentar, para garantir que comam o mínimo recomendado, quando restringem muito a alimentação. Ao mesmo tempo, essa técnica é recomendada por sites e revistas de beleza para estimular a perda de peso. O “diário alimentar” consiste em anotar sistematicamente o que se come, a fim de conscientizar os indivíduos acerca da importância do que comem. Aqueles que indicam a técnica defendem que quando possuem uma visão consciente do que estão ingerindo, as pessoas conseguem ter maior controle sobre a sua alimentação, e o engajamento no tratamento do transtorno — ou no emagrecimento, se for o caso — se torna maior.

O que a pesquisadora concluiu, no entanto, é que o diário e a anotação de tudo o que se come muitas vezes parece reforçar a obsessão pelo controle da alimentação, presente na anorexia e na bulimia. Para pessoas que sofrem do transtorno, o diário pode ser um vilão, e não um aliado. Uma das pacientes entrevistadas para a pesquisa, por exemplo, fala da grande dificuldade que o anoréxico tem de fazer o diário, pois além de fomentar sua compulsão pelo controle alimentar, aumenta a culpa pela ingestão. Além disso, como Marisol mostra, muitas pessoas distorcem o conceito do diário e fazem dele um instrumento de controle e punição, pervertendo e levando ao extremo o automonitoramento, como o exemplo que consta na dissertação: “Hoje comecei um ‘diário’ alimentar, pra tentar me policiar mais com o que eu como e, claro, contar as calorias. Pretendo registrar as punições também, claro que não de maneira explícita pra não correr o risco de ser descoberta” (extraído do blog #Bella#Mia).

 


Os transtornos e a web

“Se olhe no espelho e faça perguntas do tipo: ‘Até quando vou ser essa baleia?’ ‘Ele prefere ela porque ela é magra e eu sou gorda!’ ‘Olha que corpo lindo aquela garota tem... Ela é perfeita e eu não!’ Depois destes pensamentos, absolutamente TUDO o que vc colocar na boca, sinta culpa. Muita culpa! Se xingue de gorda. Faça isso o dia inteiro, por dias e se preciso, após uma refeição, sinta tanta + tanta culpa, que faça vc chorar...”

Essas “recomendações”, transcritas pela pesquisadora em sua dissertação, foram extraídas de uma postagem de um blog que defende uma postura denominada “pró-anna e mia”. Anna e mia são uma espécie de abreviação dos termos anorexia e bulimia. Marisol explica do que se trata: “Pró-anna e mia é um movimento de positivação da anorexia e da bulimia, considerando-as estilos de vida, e não patologias.”

Para essas pessoas, a magreza é o elemento essencial de uma boa aparência física, o que é determinante na obtenção da felicidade e do sucesso. A antropóloga ainda explica que este é “um movimento sobretudo encontrado na Internet, como manifestações de pessoas que se apropriam das ferramentas virtuais, entre elas blogs, perfis em sites de relacionamento e redes sociais, para divulgar práticas e concepções identificadas pelo estilo de vida anoréxico ou bulímico”. Seriam, então, “espaços para encontrar apoio para seguir as práticas anna e mia, compartilhar orientações nutricionais (dietas, práticas punitivas e restritivas) e inspirações”, ela conta.

Ao evidenciar a existência dessas práticas e discursos, a pesquisadora pondera a necessidade de lidar com o tema de uma forma cuidadosa: “Há um verdadeiro temor por parte de profissionais da saúde e de pessoas envolvidas com o tratamento de pacientes com transtornos alimentares, que entendem como problemática a percepção da anorexia e da bulimia como estilos de vida, e não patologias. Consideram que se trata de um sintoma da doença não vê-la como uma doença. Além disso, há uma percepção de que a divulgação desses conteúdos pode ampliar o problema.”

 

 

“Eu só quero ser perfeita”

A principal perspectiva apontada por essa pesquisa foi a de considerar, primeiro, como afirma a antropóloga, que “os transtornos alimentares são fenômenos complexos, e também que não é possível isolá-los, sem considerar relações mais amplas associadas à alimentação,  à valorização da magreza e à lipofobia contemporâneas”. As fronteiras entre comportamentos considerados patológicos e saudáveis podem ser tênues, e a relação entre esses elementos, para Marisol, “indica que talvez seja necessário questionar não somente aquilo que foge à norma, ou seja, os transtornos alimentares, mas também aquilo que é visto como a própria norma referente aos ideais de saúde, beleza e felicidade”.

Marisol, por fim, avalia: “A todo momento somos bombardeados por ideias de beleza, magreza e juventude, ideais estes que acabam por constituir uma verdadeira lipofobia. Qualquer forma de gordura e imperfeição deve ser banida. Nesse sentido, mais do que tomar esses fenômenos como patologias individuais, precisamos nos responsabilizar por essas patologias sociais, refletindo sobre o tipo de sociedade que queremos ser.”

 

 

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