Este ensaio se propõe a discutir o resto como causa do desejo tomando como percurso a obra “A terceira margem do rio” de Guimarães Rosa. Sua tessitura está organizada na margem onde se encontram literatura e psicanálise, articulação esta que se faz presente na referida obra onde estão em jogo o desejo e um resto, como causa desse desejo, que é incapaz de ser todo coberto pela linguagem. Não existe a intensão de explicar o conto, ao contrário, a perspectiva é a de explorar a riqueza do que ele possa representar, extraindo dele significações que possam ilustrar o desejo como causa do sujeito inconsciente.
A ideia de que há um percurso do olhar ao desejo na relação entre Riobaldo e Diadorim, personagens de Grande Sertão: Veredas, é o que movimenta esse trabalho: através das teorias de Jacques Lacan, Sigmund Freud e Maurice Merleau-Ponty sobre o olhar e o desejo pode-se examinar esse percurso e determinar a influência que cada elemento exerceu no outro e a influência que esse conjunto, em sua totalidade, exerceu no romance de João Guimarães Rosa.
O livro Corpo de baile, de Guimarães Rosa, foi publicado em 1956 e contém sete narrativas, sendo a última intitulada Buriti. Nela há a história de Miguel, adulto, formado em medicina veterinária, que, depois de morar muitos anos na cidade, retorna à fazenda “Buriti Bom” para trabalhar. O dono da fazenda era Liodoro, um homem rico, machista e dominador. Ele era pai de Glória e sogro de Lalinha, moça citadina, que se vê prisioneira do sertão. A sexualidade das duas se aguça na medida em que elas se encontram com Miguel nos campos rodeados de buritizais. O sertão faz desabrochar os desejos mais ocultos das personagens. O Buriti se torna símbolo do desejo e do amor.
Embora a obra de Rosa dedique um espaço importante ao problema amoroso e erótico, não são muitos os estudos dedicados ao romance breve Dão-Lalalão, onde as personagens Soropita e Doralda vivem e experimentam um amor carnal, perfeito, esponsal, que lhes permite alcançar a perfeição do desejo. Rosa reescreve o desejo, não como obstáculo ou limite à perfeição da alma, nem como separação maniquéa entre o corpo impuro e o espírito afastado do corpo, mas como saudade última de bem, de satisfação, de radicalização da realidade.
O conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, está publicado no livro Primeiras Estórias e já recebeu inúmeras leituras críticas, montagens artísticas, performances, foi cantado também por Caetano Veloso e Milton Nascimento. Neste artigo, invertendo o que ocorre no conto, é a perspectiva da escolha do pai que será examinada, em diálogo com a canção “Margem” do músico paulista Beto Furquim que recria essa mudança de ponto de vista; também será estabelecido um diálogo com o conto “Sonho de uma flauta”, de Hermann Hesse. Se essa narrativa pode ser lida como abertura ao contingente e espera angustiante do ponto de vista do filho, é possível pensar que do ponto de vista paterno tal escolha não tenha a mesma dimensão, pelo contrário, o pai mantém-se fiel à sustentação do seu desejo: ainda que o rio e a canoa signifiquem, para ele, a solidão, o silêncio, sua desconstrução, são também a sua jornada. A canção é o barqueiro desta navegação. A partir dela e de sua força lírica, vão se fiando e desfiando os fios do rio que a terceira margem obriga navegar.
O presente artigo tenta articular leitura comparativa de três textos fragmentos de um romance, uma carta e fragmentos poéticos (de Guimarães Rosa, António Nobre e Álvaro de Campos, respectivamente)
sob o signo da ausência do corpo. Na textualidade de cada um dos gêneros contemplados pelo olhar do
leitor, a corporalidade se faz ausente de formas diferenciadas, articulando discursos metonímicos de um mesmo desejo, ainda que não necessariamente nominado. A perspectiva comparatista e o aparato psicanalítico se fazem operacionalmente interessantes e eficazes.