A preparação das notas da correspondência trocada entre João Guimarães Rosa e seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, está nos levando a ampliar a compreensão da tradução e da recepção da obra do escritor nos anos 1960 na França. Um dos aspectos desse processo que sempre nos intrigara, e que as cartas trocadas entre o escritor e seu tradutor não eram capazes de esclarecer, dizia respeito ao modo como se estabelecera o contato entre eles. A investigação que empreendemos a partir do nome de Michel Chodkiewicz, editor da Seuil responsável pela publicação das obras de Guimarães Rosa junto a essa editora, levou-nos não só a responder a essa questão, como a entender o papel fundamental que o compromisso pessoal de um editor para com uma obra representara para a publicação de Corpo de baile na França dos anos 1960.
Os arquivos tiveram um papel determinante, em nossa tese de doutorado,na construção de um novo olhar acerca da primeira versão de Grande sertão: veredas publicada em 1965 na França. De fato, o surgimento, em 1991, de uma nova versão desse romance parece ter bastado para fixar a opinião da insuficiência do primeiro Diadorim, título francês do romance de Guimarães Rosa. Contudo, os artigos publicados no lançamento de Corpo de baile e de Grande sertão: veredas na década de 1960 na França mostram-nos o encantamento e o espanto dos críticos diante das obras daquele autor brasileiro até então desconhecido no país. Os elogios ao trabalho do tradutor, Jean-Jacques Villard, são quase unânimes, o que já instigaria a leitura atenta dessa tradução e sua reavaliação. Entretanto,os artigos legaram-nos igualmente uma referência importante para entendermos o horizonte literário daquele tempo e a perspectiva adotada por Villard em sua tradução: a comparação de Guimarães Rosa com um escritor francês que gozava então de grande prestígio, Jean Giono. Isso nos permitiu recolocar a primeira tradução não só em sua própria história, mas também na história do romance de Guimarães Rosa,desfazendo a ideia de que possa haver progresso entre as diferentes versões de uma mesma obra.
Na extensa correspondência que trocou com os seus tradutores, Guimarães Rosa não só responde minuciosamente às questões que lhe eram colocadas – muitas vezes de caráter referencial em razão da enorme abundância de nomes de plantas, animais e expressões regionais presentes em seus livros –, como, indo muito além delas, acaba desvendando algumas das particularidades de sua poética. Neste artigo, apresentamos algumas passagens desse diálogo.
Ao ler a correspondência de João Guimarães Rosa com seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, surpreendi-me ao descobrir que um de seus contos mais conhecidos, A terceira margem do rio, havia sido publicado na revista Planète, editada pelos pais do realismo fantástico Louis Pauwels e Jacques Bergier. A revista, criada na esteira da comoção provocada por O despertar dos mágicos, colocava-se, antes de tudo, contra o positivismo científico dominante na época e levava em conta os fenômenos paranormais, a alquimia, as capacidades inexploradas do cérebro humano. “Rien de ce qui est étrange ne nous est étranger ” era o lema da revista. Neste artigo, pretendemos, por um lado, contar a estória da publicação e da tradução desse conto e, por outro, pensar esse fenômeno como integrado ao modo como as obras de Guimarães Rosa foram recebidas na França dos anos 1960.
La réception française de l’œuvre de João Guimarães Rosa tient un peu de la rencontre manquée. Elle avait bien commencé avec le vif intérêt des éditions du Seuil, qui avaient préempté les droits sur le roman Grande sertão : veredas. Le cinquantenaire de sa mort fournit l’occasion de revenir sur les heurs et malheurs de notre lecture et de quelques malentendus suscités par cette œuvre majeure.
Este trabalho propõe-se a examinar as duas versões francesas de Grande Sertão: Veredas, separadas por um intervalo de quase trinta anos, e verificar como elas procuram recuperar a poética roseana. Para tanto, discute-se, com o auxílio dos críticos de sua obra e do próprio Guimarães Rosa em sua correspondência com seus tradutores, em que consiste essa língua especial que é o português-brasileiro-mineiro-guimarãesroseano, em que falado e escrito, realidade e ficção, prosa e poesia, sujeito e objeto são indissociáveis. A impossibilidade de submeter a escrita de Rosa a essas categorias estanques levou-nos a eleger o ritmo, tal como elaborado por Henri Meschonnic, como o conceito que poderia nos guiar nas análises das traduções do romance de Rosa. Desvendando o sujeito como ponto crucial do ritmo, Meschonnic recoloca todo escrito literário e toda tradução em sua história, fazendo-nos entender que os conceitos de poética que os regem são ligados às representações que certa época tem de literatura. A partir das críticas de imprensa, procuramos então reconhecer o universo literário peculiar que acolheu cada uma das versões de Grande Sertão: Veredas na França, para finalmente observar como cada tradução é manifestação da leitura historicizada da obra.
Ao ler a correspondência de João Guimarães Rosa com seu tradutor francês, Jean-Jacques Villard, surpreendi-me ao descobrir que um de seus contos mais conhecidos, A terceira margem do rio, havia sido publicado na revista Planète, editada pelos pais do realismo fantástico Louis Pauwels e Jacques Bergier. A revista, criada na esteira da comoção provocada por O despertar dos mágicos, colocava-se, antes de tudo, contra o positivismo científico dominante na época e levava em conta os fenômenos paranormais, a alquimia, as capacidades inexploradas do cérebro humano. «Rien de ce qui est étrange ne nous est étranger» era o lema da revista. Nesta comunicação, gostaríamos de, por um lado, contar a estória da publicação e da tradução desse conto e, por outro, pensar esse fenômeno como integrado ao modo como as obras de Guimarães Rosa foram recebidas na França dos anos 1960.
Os anos que se seguiram à Segunda guerra mundial são marcados, nos Estados Unidos e na Europa, por um grande interesse pela América Latina, que se traduzia pela busca de conhecimento de sua cultura, principalmente no que se referia à música e à literatura. O caso da Knopf Incorporation é significativo desse movimento no universo norte-americano. Na pessoa de seus diretores, Alfred e Blanche Knopf, a editora sempre buscou novos talentos na Ásia e na Europa. Mas foi apenas com o advento da Segunda guerra mundial e com a “Política da boa vizinhança” instaurada pelo governo Roosevelt, que eles se voltam para a América Latina e passam a publicar, entre outros, Jorge Amado, Gilberto Freyre e Guimarães Rosa. No universo francês, a Gallimard cria em 1951, sob a direção de Roger Caillois, a emblemática coleção “La Croix du Sud”. Especializada na literatura latino-americana, inaugura-se com Ficções de Jorge Luis Borges e publica entre outros, nos anos subsequentes, Julio Cortázar, Alejo Carpenti
A recepção de uma obra literária, como explica Jauss em sua teoria da recepção,
sempre se faz a partir das expectativas do público e dos críticos no âmbito de certa cultura. No
Brasil, as estórias de Guimarães Rosa dialogam, no momento de seu lançamento, com o
regionalismo então em voga e, também, com as inovações do modernismo. A novidade de sua
escrita e sua ligação com a terra será reconhecida também na França, onde ele será comparado
com o escritor provençal Jean Giono. Nesta comunicação, gostaríamos de comentar esse
paralelo estabelecido entre os dois autores, a fim de poder desenhar com mais nitidez o
horizonte literário que acolheu Guimarães Rosa na França dos anos 1960.