Bastante conhecida por seu olhar míope (mas poucas vezes em baçado!), a personagem Miguilim, de "Campo geral", apreende o mundo sobretudo através de seu corpo, isto é, da visão das pequenas coisas, de cheiros, toques e sons. Em nossa leitura da novela, examina remos o fluxo dessa experiência sensória em sua relação com o próprio corpo da linguagem rosiana. Nesse caso, será analisada outra característica fundamental de Miguilim: a sua atividade como contador de estórias. Esta, além de criar sentidos para as percepções sensoriais da personagem, vai se constituindo como um modo de enfrentar os reveses de uma infância ma rcada por dúvidas intensas, pelo medo e pela morte.
Este artigo apresenta uma leitura do conto “O recado do morro”, de Guimarães Rosa, buscando capturar a importante dimensão da vocalidade nas transmissões de um recado emitido pelo Morro da Garça. A “viagem da voz” — concomitante à viagem de uma comitiva por sete fazendas de Minas Gerais — tem início com o estranho grito silencioso do morro que, transmitido por sete mensageiros, aos poucos se formula em um poema cantado. Neste conto que entrelaça uma viagem linguística e um deslocamento espacial com evidente valor simbólico, a importância da voz é desde o início captada nas ressonâncias vocais do primeiro recadeiro, um eremita. Para tratar dessa ressonância vocal responsável por lançar adiante as palavras confusas do recado e criar um elo entre os recadeiros, são contempladas a noção de eco — a partir do mito de Eco e Narciso — e a noção grega de enthousiasmós — a partir do texto Íon, de Platão.
O artigo propõe uma leitura do conto “Meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa, a
partir da questão da voz e de aspectos da cultura indígena: o recorrente uso de termos do tupiguarani e o aproveitamento de uma das mais conhecidas lendas amazônicas, a lenda da Iara,
sereia dos rios cuja voz, canto e beleza atraem um jovem índio em direção à morte. O conto é
narrado por um onceiro que, conforme fala, sofre uma metamorfose em onça. Com isso, a
narrativa se elabora nas fronteiras entre humanidade e animalidade, entre palavra vocalizada e
ruído animal sem sentido, bem como entre o português e o tupi-guarani.
A comunicação tem por objetivo expor as relações entre voz, linguagem literária e composição ficcional em um conto de Guimarães Rosa, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, abordando a questão da loucura expressa no “canto sem razão” das duas personagens femininas referidas no título. A análise atenta de algumas passagens dessa narrativa de Primeiras estórias leva-nos a escutar as margens extremas que a voz associada à loucura pode alcançar. Por um lado, essa voz ecoa desde a mais absoluta carência de sentido em uma cantiga que “não vigorava certa nem no tom, nem no se-dizer da palavra”; por outro, esse mesmo canto será capaz de reagregar os laços mais vitais de uma comunidade sertaneja. O surpreendente nesse conto de Guimarães Rosa é o fato de ele condensar, em suas poucas páginas, uma voz que ressoa, a um só tempo, aquém e além do sentido que comumente conferimos somente à palavra ou à lógica da linguagem. Para desenvolver essas questões, recorre-se também a alguns teóricos que, nas últimas décadas, pensaram a questão da voz associada ou não à palavra.
Esta dissertação de mestrado faz uma análise da novela "Campo Geral", de Guimarães Rosa, considerando a percepção sensorial da personagem Miguilim. Antes, porém, há um estudo sobre a percepção sensorial na obra de Rosa, em que se consideram algumas idéias do filósofo Merleau-Ponty. Analisam-se trechos de Boiada (anotações que Guimarães Rosa fizera em sua viagem pelo sertão), além de passagens retiradas de "São Marcos", "A hora e a vez de Augusto Matraga" e Grande Sertão: Veredas. Discute-se, sobretudo, a relação entre a percepção sensorial das personagens e o caráter poético da linguagem de Rosa. Inclui-se, nesse estudo, também a relação entre o corpo da palavra e o corpo do leitor. Na análise da novela "Campo Geral", trabalha-se com a experiência do visível. O olhar míope da personagem Miguilim revela uma experiência de ordem poética e de resistência a um mundo que reduz o corpo a um instrumento de trabalho. Por fim, analisa-se a formação de Miguilim como contador de estórias. Essa atividade elabora sentidos para as percepções sensoriais da personagem e mostra ser recurso importante no enfrentamento da morte e na afirmação da alegria, temas fundamentais de "Campo Geral".
Instituto de Estudos da Linguagem. Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária
Esta tese de doutorado investiga a vocalidade na obra de Guimarães Rosa. O conceito de vocalidade, definido a partir dos trabalhos de Paul Zumthor, considera a voz não apenas como suporte ou veículo sonoro da palavra, mas também como manifestação de sentido que reverbera aquém e além da palavra. No texto literário de Guimarães Rosa, a dimensão da vocalidade é trabalhada no próprio corpo sensório da palavra poética, que produz feixes de sentido que escapam às determinações da linguagem e, dessa maneira, conseguem aludir ao que seria indizível no sertão rosiano. Além disso, as mais variadas e estranhas vozes escutadas nesse sertão ocupam um lugar central no desenvolvimento de algumas narrativas, como "Meu tio o Iauaretê", "Buriti" e "O recado do morro", que são detidamente analisadas. Em "Meu tio o Iauaretê", a vocalidade alia-se à questão da animalidade no decorrer da metamorfose do narrador em onça, cuja fala é continuamente atravessada por ruídos aquém do humano, quando a linguagem corre o risco de ser devorada pela irrupção de uma voz animal. Em "Buriti", a voragem sonora das noites do sertão é apreendida pela escuta hipersensível da personagem Chefe Zequiel, capaz de alcançar um núcleo insondável da noite, uma "voz de criatura" que mal resvala o sentido, mas que será revertida no erotismo pujante dessa novela. Em "O recado do morro", um recado enviado pelo Morro da Garça vai se formulando de modo fragmentado e confuso, à medida que é passado e alterado por sete mensageiros. Essa transmissão depende do entusiasmo (enthousiasmós, em grego = com um deus dentro de si) que se manifesta na voz das personagens para além das palavras do recado, até ele se organizar e se revelar na forma de um poema cantado. Por fim, essas questões são retomadas e expandidas com o objetivo de mostrar como a vocalidade ganha extensão em outras narrativas de Guimarães Rosa e elabora a seu modo importantes eixos temáticos dessa obra ficcional.