A comunicação tem por objetivo expor as relações entre voz, linguagem literária e composição ficcional em um conto de Guimarães Rosa, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, abordando a questão da loucura expressa no “canto sem razão” das duas personagens femininas referidas no título. A análise atenta de algumas passagens dessa narrativa de Primeiras estórias leva-nos a escutar as margens extremas que a voz associada à loucura pode alcançar. Por um lado, essa voz ecoa desde a mais absoluta carência de sentido em uma cantiga que “não vigorava certa nem no tom, nem no se-dizer da palavra”; por outro, esse mesmo canto será capaz de reagregar os laços mais vitais de uma comunidade sertaneja. O surpreendente nesse conto de Guimarães Rosa é o fato de ele condensar, em suas poucas páginas, uma voz que ressoa, a um só tempo, aquém e além do sentido que comumente conferimos somente à palavra ou à lógica da linguagem. Para desenvolver essas questões, recorre-se também a alguns teóricos que, nas últimas décadas, pensaram a questão da voz associada ou não à palavra.
Em Guimarães Rosa, muito mais do que questões linguísticas ou regionalistas, o que se destaca é a experiência humana que, de certa forma, torna-se transcendente, pois é através de seu entendimento do que é a existência em si que ele consegue captar uma terceira margem do ser. A inserção de uma terceira margem ao rio reflete uma espécie de inquietação, pois Guimarães Rosa nos sugere abandonar margens preestabelecidas e, talvez, seguras, e estabelecer outra. O presente trabalho analisa o conto “A terceira margem do rio” procurando marcar os caminhos em que se busca pelo transcendente, por um percurso que possa romper os limites entre o mundo cotidiano e o mundo metafísico. Ao instaurar-se a terceira margem, instaura-se certa descontinuidade necessária que leva o ser a perceber-se como autêntico e, aí sim, livre.
Proponho uma leitura do conto “Intruge-se”, que faz parte de Tutaméia: terceiras estórias, de João Guimarães Rosa. Trata-se de uma paródia de conto policial ambientado no sertão e protagonizado por vaqueiros que traziam uma boiada do Saririnhém quando se deparam com um crime. O protagonista não é um policial, mas o capataz Ladislau, que se encarrega de descobrir qual dos vaqueiros teria esfaqueado Quio. O conto recusa atender qualquer expectativa de um método ou de um raciocínio dedutivo que costumam ser os pontos fortes de um investigador, como nos contos realizados e teorizados por Edgar Allan Poe; e essa distorção faz o sentido da narração deslizar do investigador para a alegoria do autor que assinala o caráter cindido do sujeito e questiona o prestígio dado a ele nas sociedades modernas. A paródia do conto policial em “Intruge-se” integra um conjunto de contos de Tutaméia que propõem uma alegoria do autor. Esse artigo elaborará uma análise da paródia e da alegoria no conto de Rosa segundo a recusa da transparência da linguagem da qual trata Barthes com base na afirmação freudiana de que o caráter cindido do sujeito correlaciona-se à dualidade do signo. A investigação desarrazoada de Ladislau encena a perspectiva do autor que recusa padrões de representação realista como os utilizados no conto policial. O autor avalia o gênero conto como interferência no conto policial e aproxima-o da estória ou de uma invenção cujo valor consiste em intervir nas convenções narrativas para liberar a produção de sentido.
Nos contos de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, transita-se por vários aspectos e temas que caracterizaram a obra do autor, dentre eles o tema da infância. Em “A partida do audaz navegante”, o olhar infantil é responsável por revelações de ordem pessoal, sentimental, existencial. O presente texto visa a analisar o conto a partir de observações feitas durante nosso convívio com o texto. Não selecionaremos um único aspecto, mas, a partir de interpretações várias, tentaremos associá-las entre si, em busca de alguma unidade. Para atingir essa finalidade, dividimos o estudo em duas partes: a primeira encerra aspectos genéricos que se podem depreender não só do conto em questão, como também de outros contos de Primeiras estórias; a segunda objetiva rastrear o texto,
esmiuçando-o em seus detalhes. A análise em questão é resultado do olhar de leitora apaixonada que, a cada nova leitura, redescobre o prazer de ver pelo olhar da infância.
O trabalho analisa o vínculo entre a melancolia e o devaneio na criação e manutenção do discurso poético em “Buriti”, de Guimarães Rosa, parte da obra Corpo de baile. Através de três personagens centrais – Miguel, Maria Behu e Chefe Zequiel – imprime-se a tonalidade melancólica, que propicia o devaneio e o lamento, associados ao modo de ser introspectivo e sensível. Além do exame das personagens selecionadas, são analisados elementos do espaço e do tempo que, dada a atmosfera noturna do texto, contribuem na disseminação da poeticidade discursiva, alicerçada, portanto, no tripé personagens, espaço e tempo. Para o estudo da narrativa como um todo, conta-se com a obra de Wendel Santos sobre “Buriti”, A construção do romance em Guimarães Rosa, seguida da leitura das cartas trocadas entre o escritor e seu tradutor em Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. Para fundamentar a análise dos recursos poéticos, valese de O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi e “Em torno da poesia” de Tzvetan Todorov. Para o exame do tempo e do espaço, associados ao devaneio e à melancolia, a contribuição teórica centra-se nas obras A poética do espaço e A poética do devaneio de Gaston Bachelard e As estruturas antropológicas do imaginário de Gilbert Durand. Os resultados da análise confirmam que a poeticidade do discurso da narrativa tem estreita conexão com o modo de ser melancólico, o que o devaneio alimenta e propaga, ad infinitum.
Paisagens são textos carregados de sentidos. Mais que pano de fundo das histórias, a leitura da paisagem dinamiza a interpretação dos textos, já que ela se constitui pelas relações estabelecidas entre os sujeitos e os lugares, conforme Holzer (1999). Relacionando os estudos literários a conceitos da geografia cultural, este trabalho pretende ler a construção da paisagem no conto “Arroiodas-Antas”, do livro Tutaméia (1967), de Guimarães Rosa, aliando o espaço de remissão mítica presente no conto ao percurso simbólico de regeneração efetuado por Drizilda, personagem central.
As questões espaciais no trabalho de Guimarães Rosa são tão relevantes quanto os outros elementos, como os personagens, o tempo, o enredo etc., pois são fundamentais para o desenvolvimento das situações trágicas, cômicas, dramáticas, fantásticas, românticas e amorosas da sua prosa. O trabalho objetiva discutir, através da análise dos contos “Os irmãos Dagobé” e “Sarapalha”, com o apoio de alguns teóricos e do dicionário de símbolos, o quanto a personalidade, valores, relações e atitudes dos personagens estão interligados ao sertão e a suas particularidades regionais, assim como as mudanças internas estão vinculadas diretamente a transformações externas. Os contos adotados para estudo, um de narrativa curta e outro de narrativa mais extensa possuem formas diferentes de mostrar o quanto o sertão tem uma forma particular de penetrar a alma do indivíduo e determinar o rumo das perspectivas inerentes ao homem, como sobrevivência, abandono, solidão e a linha tênue entre a vida e a morte.
O trabalho apresenta os primeiros resultados da pesquisa de doutorado em andamento na PUC Minas que busca investigar parte dos arquétipos, mitos e metáforas da Bíblia que podem ser encontrados em Grande sertão: veredas. Segundo Northrop Frye (2004), a Bíblia, com sua imensa quantidade de mitos, arquétipos e metáforas, se constituiu um "universo mitológico" que serviu de inspiração para toda a literatura ocidental, no qual consciente ou inconscientemente escritores têm buscado e reproduzido em suas composições literárias. Para Jung (2000), os arquétipos se definem como expressões do inconsciente coletivo da humanidade que repetem e representam experiências de tempo imemoriais. Essas formas podem ser encontradas nos mitos da cultura coletiva e são buscados e reatualizados, segundo Mirceia Eliade (1972) e também Nietzsche (2012), em seu conceito do “Eterno retorno”. Considerando essas características fundamentais propomos a releitura de dois episódios emblemáticos de Grande sertão: veredas: a travessia do rio com o menino na canoa, e a travessia do Liso do Sussuarão, buscando referências no arquétipo bíblico da travessia do povo hebreu pelo deserto para se alcançar a terra prometida, o qual metonimicamente poderia representar a travessia de toda a humanidade pelo deserto da provação para se alcançar o paraíso e seu criador. Esperou-se assim, enriquecer e lançar novas veredas interpretativas e reflexões, sobre o sertão que habita dentro de cada um de nós e a grande travessia da vida, tal como apresenta Guimarães Rosa.
A obra de um escritor como Guimarães Rosa provoca diferentes pontos de vista entre os que encaram o desafio de estudá-la. Diante da multiplicidade interpretativa promovida por meio da produção literária do autor, uma primeira dificuldade em que a perspectiva crítica se depara é o desafio de buscar uma maneira para lidar com uma obra multifacetada e de múltiplas dimensões. Assim, objetiva-se por meio deste estudo conhecer e entender como foram recebidas suas primeiras publicações, considerando os diferentes posicionamentos da crítica literária. Procura-se oferecer maior destaque às apreciações divulgadas na efervescência das primeiras publicações do escritor, noticiada por meio da crítica jornalística, levando em consideração os aspectos positivos e negativos. Para tanto, foram analisados textos críticos da ocasião em que se processou a leitura inicial da obra – a partir da década de 1940. É preciso considerar que a recepção das primeiras publicações da obra de Rosa reproduz o momento da crítica literária no Brasil, marcado pelas polêmicas e embates travados nesse âmbito. Textos de Flora Süssekind, Eneida M. de Souza e Silviano Santiago norteiam a discussão, os quais se estendem a um referencial histórico sobre o processo de transformação ocorrido na crítica literária no Brasil e a transição da crítica “não especializada” (crítica de rodapé) para a crítica especializada (crítica acadêmica). Esse período (décadas de 1940 e 1950) é um tempo de mudanças e implantação de novos modelos críticos, cujos desdobramentos se estendem até a contemporaneidade.
Mais do que meros contadores de histórias ou estórias, os grandes escritores são capazes de criar universos ficcionais particulares, nos quais as mínimas partes se inter-relacionam dentro de um todo poético articulado. Nesse sentido, todos os elementos constituintes de um enredo combinam-se organicamente de tal modo que, por meio de cada um é possível ver representado o discurso maior pretendido pelo autor, embora somente na complementaridade de um com o outro se possa realmente materializar a totalidade do tecido. Em outras palavras, quando um escritor elabora seu texto, ele está ao mesmo tempo criando um universo particular – porque tudo naquela tessitura se combina de forma muito específica – e geral – na medida em que existe um princípio regente o qual se manifestará em qualquer outro texto produzido por ele. Fosse diferente, bastaria ao escritor (e ao leitor) apenas um único objeto artístico, já que qualquer outro diria exatamente aquilo que um primeiro já teria revelado. Por extensão, do mesmo modo que um conto pode interagir com toda a ficção narrativa que compõe a obra de um artista, dentro dele todas as suas partes estão conectadas numa espécie de jogo metonímico. Partindo, então, da premissa de que todo texto literário é merecedor de uma leitura singularizante, ainda que ele, obviamente, se insira no todo de um projeto estético, optamos por trabalhar em contos homônimos – “O espelho” – de Machado de Assis e de Guimarães Rosa – seus aspectos imagético-simbólicos, dando um destaque especial, sobretudo, para o objeto-tema escolhido por seus autores.
O presente trabalho propõe uma análise do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, através da observação dos mecanismos linguísticos de que se vale o autor na sua construção, para apontar algumas confluências entre os discursos literário e o psicanalítico, no romance. Para isso, utilizaremos pressupostos teóricos da teoria da ironia, procurando estabelecer alguns pontos tangenciais entre a literatura rosiana, os recursos da ironia e a psicanálise. Ao escapar da formulação de conceitos definitivos, mostraremos que o autor transforma o campo literário num lugar que se quer aberto ao diálogo, ao trânsito e a múltiplas interpretações, possibilitando, ainda, a circulação do mal-entendido, pois são as mensagens aparentemente sem sentido e absurdas é que se mostram evocadoras e criadoras de significações para além dos sentidos admitidos no código da língua. De acordo com essa lógica, apontaremos na obra de Rosa outra vertente da linguagem, na qual a letra esvaziada desse compromisso de reprodução dos sentidos, já no campo da escritura, mostrase capaz da ruptura com os semblantes e aproximação com os efeitos enigmáticos do gozo na escrita.
Este texto objetiva considerar que, diferentemente do vivenciado em tempos passados, mudanças ocorrem nas práticas em Saúde Mental que possibilitam saídas para o sujeito encarcerado no mundo das drogas. Elas contam com possibilidades desse próprio sujeito e com a entrada em cena de outros atores sociais, indo além do instituído pelas políticas públicas, como a Reforma Psiquiátrica, e pelo saber profissional, surpreendendo com invenções que só acontecem quando se abre para o inusitado e se desprende do enraizamento aos mesmos paradigmas. Ilustra-o um caso clínico atendido no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Coronel Fabriciano-MG, que encontra sua própria saída seguindo os postulados usados pela equipe de saúde do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), saberes construídos em parceria inédita entre aquele movimento e a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais, através da Escola de Saúde Pública. Traçase um paralelo entre o paradigmático caso da internação manicomial da mãe e filha de Sorôco, personagens de João Guimarães Rosa, em seu livro Primeiras estórias, em que o determinismo da única e imposta saída são percebidos de forma avassaladora, tanto pelos protagonistas como pelo povo do local, comparando-se com as possibilidades contemporâneas. Diversificação das saídas permitem ampliação dos recursos, facilitando ao sujeito a localização de seu papel singular, encontrando respostas únicas, originais, abrindo outros espaços psíquicos possíveis, para além do que nos foi retratado pelo poeta. Aborda também a capacidade de interposição do saber profissional entre o sujeito e suas saídas, por estarem estas fora do instituído como saber legítimo.
A interpretação canônica do conto “A terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, nos fala da existência humana diante da morte. O pai morre (a canoa é o caixão) e vai para a dimensão transcendente ― a terceira margem do rio. O filho permanece fiel à memória do pai, recusandose a esquecê-lo e, portanto, recusando-se a aceitar a morte do pai e a sua própria morte. Gostaria de propor uma interpretação diferente fazendo uma análise intertextual com o poema de Fernando Pessoa, “Navegar é preciso;
viver não é preciso”. Fernando Pessoa recebeu influência do existencialismo de Heidegger e de Sartre. Nesta interpretação, o conto de Guimarães Rosa é uma metáfora da condição humana. A terceira margem é simultaneamente o não-lugar da loucura e dos projetos de vida. O não-lugar não se confunde com nenhum lugar, pois ele indica um lugar que ainda não existe concretamente, mas que existe enquanto significador das ações existenciais. Eu estou direcionado para este lugar. Assim, o pai insiste em fixar o seu projeto individual (a canoa) em um rio que não para de correr (a finitude da vida; o transcorrer da temporalidade). Esta é a característica marcante da existência humana: a tentativa de enraizamento no fluxo contínuo do tempo vivido. Permanecer na mudança; fixar o transitório; banharse duas vezes no mesmo rio (segundo Heráclito, isso seria impossível, pois o rio já não é o mesmo, assim como você mesmo). Segundo Pessoa, viver não é necessário; o que é necessário é criar. Diante de uma existência humana sem nenhum sentido a priori, só nos resta criarmos, nós mesmos, um sentido para ela, através de um projeto de vida, mesmo que esse projeto seja ficar navegando no mesmo lugar de um rio.
Pretendemos com este texto relacionar a escritura rosiana à filosofia do álcool, conforme proposta no livro O último copo: álcool, filosofia, literatura (2013), de Daniel Lins, que, por sua vez, inspira-se na vida e no texto do filósofo francês Gilles Deleuze, um ex-amante do álcool, tanto em suas possibilidades libertárias quanto estéticas. Abordaremos a escritura e a vida de João Guimarães Rosa tomando como referência o terceiro prefácio do livro Tutaméia, “Nós, os temulentos”, que quer dizer “Nós, os bêbados”, no sentido de rastrear uma presença do álcool e de suas possibilidades filosóficas e estéticas no texto rosiano. Tais aspectos já haviam sido, de certa forma, desenvolvidos anteriormente tendo como referência a filosofia trágico-embriagada do poeta filósofo Nietzsche no livro Mundanos fabulistas: Guimarães Rosa e Nietzsche (2011).
Este trabalho tem por objetivo fazer uma leitura de dois contos (Lá nas campinas e Curtamão) e dois prefácios (Aletria e Hemenêutica e Nós, os temulentos), textos de Tutaméia, de Guimarães Rosa. O artigo analisa duas epígrafes de Schopenhauer, que insistem na releitura. Ambas estão em Tutaméia e têm sintonia com a noção de música tanto nesse pensador quanto na obra de Nietzsche. O pensamento nietzschiano, no entanto, apostando na música como arte do irrepresentável, através de aforismas e paradoxos, escapando ao conceitual e à metafísica de Shopenhauer, parece ser mais apropriado para a leitura de Tutaméia, obra construída numa escrita nômade, dionisíaca, numa festa em que há uma predominância do significante sobre o significado.