O PRESENTE ESTUDO SE UTILIZA DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA FEITA POR ROBERTO SANTOS DO CONTO “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA”, DE GUIMARÃES ROSA, PARA REFLETIR SOBRE QUESTÕES LIGADAS NÃO SOMENTE ÀS RELAÇÕES INTERSEMIÓTICAS QUE DECORREM DE TAL EMPREITADA, MAS TAMBÉM PARA SUSCITAR QUESTÕES PRÓPRIAS À CONDIÇÃO DAS ARTES CINEMATOGRÁFICA E LITERÁRIA, REFLETINDO SOBRE A FORMA COMO ESSAS ARTES SE PRESENTIFICAM NO MUNDO E SOBRE A CONDIÇÃO DE SEUS RESPECTIVOS RECEPTORES, O ESPECTADOR E O LEITOR.
O presente trabalho tem como objetivo perscrutar como a questão da verossimilhança aparece em duas grandes obras da literatura brasileira — Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa e Dom Casmurro, de Machado de Assis —, a partir da observação da postura apresentada pelos narradores desses dois romances. Busca-se perceber se existem fraturas quanto à verossimilhança na estrutura de ambas as obras aqui citadas a partir do discurso de personagens/narradores que contam suas histórias na primeira pessoa, ou se é justamente essa característica distintiva que confere valor elevado tanto ao texto de Rosa como ao de Machado. Tal análise apresenta-se fundamentada num arcabouço teórico que se apoia em autores como Antoine Compagnon, Edward Forster, Willi Bolle, Walnice Nogueira Galvão e Silviano Santiago. Conclui-se que é através da figura do narrador posto em questão nas duas obras que o leitor se indaga até que ponto pode acreditar nos fatos apresentados, restando a ele amarrar os fios que parecem ser soltos, mas que, em dois autores geniais como Machado e Rosa, estão apenas convenientemente dispostos em forma de teia ou quebra-cabeças, para que a leitura nunca se esgote, pois há sempre algo novo a descobrir, relacionar, resgatar e construir.
Em 1982, o artista plástico Arlindo Daibert elabora uma série de 20 xilogravuras inspiradas no romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. As tensões entre escritura e oralidade, bem e mal, masculino e feminino, tão latentes no romance roseano, são ressignificadas nas gravuras de Daibert. Em Maria Mutema, xilo da série que se refere ao episódio em que a personagem Maria Mutema mata o marido e o padre pelo ouvido (o primeiro com chumbo e o segundo com mentiras no confessionário) a personagem é representada por um monstro híbrido. As imagens de Daibert não tem caráter meramente ilustrativo, mas dialogam com a obra roseana fazendo ecoar outros níveis de leitura e interpretação do texto escrito.
O artigo investiga a verossimilhança na voz narrativa de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, a partir da hipótese, indicada por Dirce Côrtes Riedel em Meias-verdades no romance, de que teria sido o “senhor” interlocutor, e não o ex-jagunço Riobaldo, quem teria escrito o relato, configurando-se assim como uma espécie de supranarrador. Para reiterar essa possibilidade, retoma-se a questão da verossimilhança e da funcionalidade de certos elementos linguísticos na narrativa. Com isso, propomos uma ampliação das leituras do romance rosiano tendo em vista a hipótese acima.
No estudo da narrativa, a tensão entre os aspectos de verossimilhança e de simulacro é um elemento presente ao longo das discussões tanto no campo da teoria fílmica quanto no da teoria literária. A experiência do cinema como ilusão de movimento e de continuidade fez surgir o embate entre uma montagem que tornasse invisível a descontinuidade elementar do fazer cinematográfico e uma opção pela ostentação desta descontinuidade. No que tange às questões da teoria literária, as primeiras tensões permeiam as discussões filosóficas de Platão e Aristóteles – desde a expulsão dos poetas de uma república ideal, dado o seu caráter subversivo, à reintegração aristotélica, que destaca os benefícios do encadeamento lógico e da representação como verossimilhança para a análise do real. A partir da modernidade, a adoção de estratégias que privilegiam a ênfase na potência do simulacro vai produzir uma mudança nessa relação entre narrativa e mundo, pois novos formatos de real passam a ser considerados, problematizando a perspectiva de representação análoga a um real contínuo e definido. O objetivo deste trabalho é analisar as repercussões narrativas de duas obras representativas destas espécies de rupturas, desta ênfase no simulacro: o conto “Partida do audaz navegante”, integrante do livro Primeiras estórias do escritor mineiro João Guimarães Rosa e o filme A idade da terra do cineasta baiano Glauber Rocha. Buscamos verificar como essas duas produções, instauradas no contexto cultural da modernidade, apresentam narrativas de ênfase no simulacro, cujas estratégias ultrapassam um mero exercício estético, uma mera ruptura formalista, para ajudar a lançar as questões desestabilizadoras das noções unívocas de tempo, espaço e identidade, inquietações tão presentes na discussão da contemporaneidade, ou modernidade tardia, como preferem alguns teóricos, ou pós-modernidade, na classificação de outros.