Sala 39

Cenas para não esquecer: histórias que não podem ser esquecidas

Filipe Alessandro de Lima Moraes

Julia do Nascimento Martins

Júlia de Queiroz Prazeres

Rebeca de Souza

Tainá Rodrigues da Silva

Introdução

A peça “Cenas para não esquecer”, dirigida por Luiz Fernando Marques, foi apresentada pela Turma 72 da Escola de Arte Dramática da USP. Com o uso de recursos tecnológicos e jogos de luzes, os ambientes construídos contribuíram para a interatividade e conexão entre os atores e o público.

Segundo a atriz Sandy Andrade, em entrevista, a criação da peça foi inspirada no filme “Hiroshima, Meu Amor” (1959), que retrata a bomba atômica que atingiu a cidade japonesa de Hiroshima. O diretor instigou os atores a explorarem suas “bombas pessoais” no palco e ao longo de duas horas e meia, foram abordados temas latentes na sociedade contemporânea, como a aceitação de corpos e de sexualidade, o machismo, o racismo, a xenofobia e a desconstrução de estereótipos.

O foco de toda a peça é a memória, trabalhada a partir da contação de histórias, que são resgatadas por meio das lembranças do elenco e pelas referências a obras do cinema com o uso de tecnologia para a imersão em novos ambientes.  

O meio é a mensagem

A peça rompe com o tradicional. No início, os espectadores ocupam o palco enquanto os atores se sentam na platéia e cenas do filme “Hiroshima, Meu Amor” são exibidas por um projetor de imagens. A apresentação foi um exemplo vivo da teoria de Marshall McLuhan, de que os meios são capazes de criar novos ambientes e influenciar nos sentimentos e sensações humanas.

Durante toda a apresentação, aparatos tecnológicos foram utilizados para a imersão total do público [Imagem: Reprodução/Instagram @turma72ead]

Também pode-se aplicar os princípios do jornalismo de Otto Groth. As entrevistas autobiográficas dos atores apresentaram outros pontos de vista possíveis pela difusão coletiva, que permeia as diferentes camadas sociais. Ocorreu uma interdisciplinaridade de temas que despertam a empatia do receptor, onde se criaram conexões e significados. 

A peça pode ser comparada a união de crônicas argumentativas. Este gênero retrata o cotidiano, expandindo-se para a de defesa de uma “visão de mundo” presente na sua forma de expressão. Para isso, faz uso do humor, da ironia e temas polêmicos.

Com referências ao filme “Kill Bill” (2003), os personagens trouxeram à tona a questão dos corpos não-brancos, especificamente os amarelos, e o processo de reconhecimento, aceitação e luta pela existência. A personagem de origem asiática não tinha sua brasilidade reconhecida pela personagem branca e elas entraram em combate. De forma simbólica, a opressora foi esfacelada pela oprimida em nome da aceitação da diversidade.

A cultura negra foi resgatada pelas músicas, instrumentos musicais, vestimentas e danças e a exibição de imagens nas paredes escuras da sala de mulheres negras, como as escritoras Carolina Maria de Jesus e Angela Davis, a atriz Zezé Motta, e a cantora Beyoncé.

De forma intimista e delicada, foi abordado o caráter opressor das forças armadas do Estado em relação à população negra. Com o uso de sons e cores das sirenes da polícia, um dos personagens, um jovem negro, parece ser perseguido dentro da universidade enquanto se dirige ao encontro de seus amigos para ensaiar as cenas finais de uma peça. 

Cabe destacar a proximidade dessa abordagem com a teoria de Hans Magnus Enzensberger, pertencente à Nova Esquerda Alemã. Segundo eles, os meios de comunicação possuem um potencial emancipador da consciência das massas, pois é possível moldar a visão de mundo delas de formas diferentes do tradicional. Dessa forma, a peça adquire um caráter de “despertar” o público para os problemas sociais. 

E a mensagem é resistência

Em determinada cena, dois atores conversam sobre seus processos de autodescoberta e aceitação [Imagem: Reprodução/Instagram @pereirainmichel]

Em uma das cenas exibidas, uma dupla de intérpretes percorreu o palco com guarda-chuvas coloridos e uma faixa que cobre os olhos. A faixa carregava um espelho posicionado na direção da plateia. “Você já fez as pazes com o seu corpo?”, foi a pergunta feita por eles para o público. O processo de descoberta é entendido como doloroso e cercado pelos estigmas sociais, mas de extrema importância para a sobrevivência em uma sociedade que prega a extinção daqueles que não se encaixam nos padrões.

Ainda na perspectiva de aceitação, três atrizes fizeram uma paródia do desenho “As Meninas Superpoderosas” e abordaram os aspectos negativos de suas vidas após os 30 anos, como a solidão, o afastamento da sociedade e a violência masculina. Essa visão deturpada sobre o corpo feminino e o processo de envelhecimento encontra embasamento no sistema capitalista, que considera o indivíduo como útil até uma certa idade. Após isso, ele pode ser descartado e sua existência, suprimida. Além disso, existe a influência do colonialismo europeu, no qual a mulher tinha apenas fins reprodutivos. 

Porém, no final da cena, as três “não tão poderosas” percebem que a vida delas ainda não está no fim e que não há necessidade de pressa, elas podem parar de correr. Mesmo com a opressão do sistema econômico e da sociedade, elas escolhem resistir.

Conclusão

No final da apresentação, o personagem que estava perdido finalmente encontra o caminho de volta [Imagem: Rebeca de Souza]

Na perspectiva do teórico da comunicação boliviano Luis Ramiro Beltrán, as políticas de comunicação devem ser pluralistas e todos os fatores sociais devem participar igualmente do processo. “Cenas para não esquecer” tem exatamente esta proposta.

Por meio de cenas difusas e que, inicialmente, parecem não ter uma relação lógica ou cronológica, os atores se lembram. Eles se lembram das opressões que sofreram, das palavras duras que ouviram, da dor dos próprios questionamentos. Se lembram das incertezas, se seriam capazes de resistir ou, simplesmente, de existir.

A criação de novos ambientes com os aparelhos tecnológicos, como celulares, telas e projetores, possibilitou uma intertextualidade valiosa com obras cinematográficas consagradas e uma imersão completa do público. Esta combinação foi essencial para que a plateia fosse atingida pela atuação profunda do elenco da peça e fosse capaz de refletir sobre suas próprias bombas.

Referências

HOHLFELDT, A. C. Glosando a obra pioneira de Hans Magnus Enzensberger. Revista Observatório, [S. l.], v. 4, n. 3, p. 726–758, 2018. DOI: 10.20873/uft.2447-4266.2018v4n3p726. Disponível em: <https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/4708> 

RENÓ, Denis Porto. O latino-americano Luis Ramiro Beltrán e as suas políticas nacionais de comunicação de massa. Biblioteca on-line de ciências da comunicação, 2007. Disponível em: <https://www.bocc.ubi.pt/pag/reno-denis-latino-americano-luis-ramiro-beltran.pdf>.