ISSN 2359-5191

25/06/2015 - Ano: 48 - Edição Nº: 57 - Educação - Faculdade de Educação
Ambiente familiar intensifica desigualdade de gênero
Estudo mostra que atividades caseiras são diferentes para meninos e meninas, e que tal contraste pode refletir no processo de escolarização das crianças
Pesquisa da FEUSP constatou que pais ainda tratam a criação dos filhos de acordo com o gênero da criança. Foto: Thinkstock

“Isso não é coisa de mocinha!”, “Vem me ajudar na cozinha enquanto seu irmão brinca na rua”. Quem nunca ouviu frases como essa? Ao conversar com crianças de uma escola da periferia paulistana, o pesquisador Adriano Senkevics, da Faculdade de Educação (FE) da USP, observou que o tratamento e as atividades direcionadas a meninos e meninas no ambiente familiar ainda carregam diferenciação de gênero. O estudo também mostra como esse modelo de criação se relaciona com o comportamento escolar das crianças, de modo que meninas acabam enxergando a escola como um ambiente mais livre que seus lares — percepção que pode, até mesmo, influenciar no bom rendimento das garotas.

Em sua pesquisa, Senkevics buscou entender qual o papel da família nesse processo: ao longo de um semestre letivo, o pesquisador acompanhou o cotidiano de alunos do 3º ano do ensino fundamental. Da turma de 25 crianças (14 meninas e 11 meninos), 20 foram entrevistadas para o estudo, contando suas experiências familiares e de lazer nos espaços fora da escola. “O que pretendemos foi entender, a partir da perspectiva de crianças de 8 e 9 anos de idade, como se dava o processo de socialização familiar e em que medida esse fenômeno nos ajudaria a pensar sua escolarização”, explica.


Meninas em casa, meninos na rua  

A partir dos relatos das crianças, Senkevics percebeu que a divisão sexual do trabalho está presente em suas vidas desde muito cedo, com as garotas sendo cobradas a participarem de afazeres da casa e obtendo menos permissão para brincar na rua, por exemplo. Os meninos, pelo contrário, tinham mais liberdade. “As meninas tendem a ficarem mais retidas no ambiente doméstico, estando praticamente privadas do acesso à rua e, consequentemente, das oportunidades de lazer e de sociabilidade que o espaço público oferece”, diz.

Embora as crianças entrevistadas fossem ainda muito jovens e não pudessem refletir politicamente sobre as desigualdades que as cercavam, Adriano conta que os pequenos notaram tais diferenciações. “Em alguma medida, tanto as garotas quanto os garotos estavam cientes das desigualdades que viviam”, afirma. Algumas meninas, inclusive, se queixaram de seu excesso de tarefas e da maior liberdade dada a seus pares do sexo masculino. “Elas perceberam que seus irmãos colaboravam muito pouco em casa e que tinham mais liberdade para brincar na rua, e em razão disso, várias meninas deixaram transparecer críticas ou, pelo menos, certo incômodo na falta de equidade das rotinas domiciliares”, lembra o pesquisador.
 

Meninas entrevistadas no estudo relataram ter menos acesso a brincadeiras em espaços públicos que seus colegas do sexo masculino.
Foto: Portal Amazonas

Ainda assim, Senkevics observou que, em ambiente escolar, as crianças acabam refletindo os papéis de gênero às quais são submetidas em casa. “O aprendizado do que é certo ou esperado para cada sexo começa desde cedo e, mesmo que a escola não o promovesse, as próprias crianças acabam, mais cedo ou mais tarde, se conformando a certos padrões”, diz. Dentre os parentes mais velhos das alunas entrevistadas, a divisão sexual do trabalho também era perceptível, com suas mães, irmãs e avós se ocupando de funções domésticas. “É difícil esperar que os alunos, sozinhos, incorporem um ideal de igualdade de gênero quando este não está presente nem mesmo entre os adultos”, afirma.


Meninas são melhores alunas?

Segundo relatório da ONU sobre Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs), divulgado em 2014, a América Latina e o Caribe possuem mais jovens do sexo feminino do que masculino nos ensinos Fundamental e Superior. Os dados mostram como as meninas vêm se destacando positivamente com relação à escolarização.

Para Senkevics, a rotina mais disciplinada imposta às garotas pode ter reflexo em sua vida escolar. “Percebemos que as moças eram cobradas de maior responsabilidade, organização, disciplina e até mesmo iniciativa — atributos esses compatíveis com as expectativas escolares”, afirma. “A socialização familiar, restritiva como é para a maioria delas, tende a incentivar nas meninas comportamentos condizentes com o que se espera no ambiente escolar”.

Além disso, muitas garotas se referiram à escola como um lugar divertido e de maior liberdade, no qual estas poderiam ocupar o espaço público e praticar atividades das quais eram privadas em casa. Essa percepção fazia com que as meninas vissem a instituição de ensino de forma favorável, enquanto para os garotos, que já gozavam de suficiente tempo para brincadeiras em casa, o colégio era tido como um ambiente no qual o espaço de lazer era menor. “Notamos uma tendência de as meninas significarem a escola positivamente face às inúmeras restrições que elas sofriam em seu cotidiano”, diz Senkevics. “Na escola elas estavam distantes dos afazeres domésticos e podiam dedicar algum tempo para aquilo que lhes apetecia”. É o que mostra o trecho abaixo, parte da entrevista do pesquisador com as garotas Pâmela e Thaís (os nomes são fictícios).

PÂMELA: É, assim, eu venho pra cá, é mais divertido.
ADRIANO: Divertido por quê?
P: É, a gente brinca, faz coisas…
THAÍS: Tem mais tempo pra brincar.
P: É, tem mais tempo pra brincar…
T: [...] Que em casa a gente ajuda a mãe e tal.

Ao perguntar às crianças o que elas gostariam de fazer no futuro, Senkevics percebeu que a maior parte das meninas almejava ocupações que exigiam alta qualificação, desejando se tornarem professoras, médicas ou veterinárias. Já os garotos sonhavam com profissões com menor necessidade de capacitação profissional e escolar, como bombeiro, caminhoneiro e jogador de futebol. Para o pesquisador, esse comportamento também pode estar relacionado não só à maior disciplina das garotas, mas a uma possibilidade de projeção que elas, porventura, enxerguem na carreira. “Creio que a maior crítica que as meninas dirigiam ao cotidiano sexista a que estavam submetidas era justamente em sonhar mais longe e serem mais ambiciosas em suas perspectivas escolares e profissionais”, diz.


Garotas enxergam na escola um ambiente de mais liberdade, o que pode ser um dos fatores responsáveis por seu bom desempenho.
Foto: Agência Brasil

Contudo, Senkevics ressalta que não se deve enxergar a criação mais restritiva e a rotina desgastante das garotas como fórmula para obtenção de resultados positivos em sala de aula. “Inúmeras mediações existem entre as práticas que as fazem garotas em casa e na rua e aquelas que as constituem alunas na escola”, esclarece o pesquisador. “Não é o ato de lavar a louça que conduz ao bom aproveitamento escolar”.
 

Atuação da escola na construção da igualdade de gênero

Ainda que a pesquisa estivesse mais relacionada ao comportamento da família em relação aos gêneros, e não ao papel da escola nessa questão, Senkevics aponta que pesquisadores e ativistas da área vêm sugerindo que a escola também atue para atenuar as desigualdades de gênero em seus espaços. Nesse sentido, uma derrota ocorreu no ano passado, quando o Congresso retirou do Plano Nacional de Educação (PNE) uma diretriz que institucionalizava o combate à discriminação nas escolas — não só de gênero como também racial, regional e de orientação sexual. “Isso torna o cenário pouco propício para o avanço da pauta, apesar das demandas da sociedade”, diz Senkevics.

Para o pesquisador, a discussão sobre discriminação de gênero ainda precisa amadurecer no Brasil. “Um educador, hoje, dificilmente proporia uma atividade didática que separasse os alunos brancos dos negros na sala de aula, correndo o risco de gerar polêmica e ser rapidamente tachado de racista. Mas o mesmo não acontece com a questão de gênero”, diz. “Opõem-se os dois sexos como se fosse natural aceitar que meninos e meninas, homens e mulheres, sejam dois polos opostos”.

 

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