Neste trabalho, propomos a reflexão sobre a violência em dois contos: “Uai, eu?”,
de Guimarães Rosa, e “O Evangelho segundo Marcos”, de Jorge Luís Borges. O modo como
a violência aparece nessas duas narrativas é especialmente produtivo. Em comum, os textos
apresentam a temática intermediada pelo discurso inverso (o da paz e do amor). O resultado
dessa operação às avessas é em Guimarães a discussão de concepções estruturantes do Estado
Moderno, a saber, seu aparato legislativo e regulatório. Já em Borges aparece a reflexão sobre
uma “estética da margem”, de onde se pode fazer as mais inusitadas traduções de uma
tradição legada. Nos dois contos, podemos perceber, em relação à violência, uma tradução
equivocada ou uma tradução famigerada (para usar uma palavra rosiana), acionada como
mecanismo de afirmação não só do estético, mas principalmente de identidade. Tais traduções
são chanceladas pela Buenos Aires moderna, fértil de mesclas e bricolagens, e pelo sertão
rosiano, lugar de cruzamentos de tempos e espaços diversos da modernidade brasileira.
Aparece nos dois textos uma compreensão de uma “modernidade periférica”, espaço
produtivo onde se articulam soluções culturais interessantes e singulares a partir das grandes
tradições europeias.
O conto “A menina de lá”, de Guimarães Rosa, aparentemente, nos evoca uma leitura recorrente em relação à obra rosiana: um estudo centrado na presença de elementos mágicos no texto. Entretanto, acreditamos que o conto deixa à mostra como uma situação comum pode ser construída como extraordinária tanto por parte dos personagens quanto por parte do narrador da história. Na narrativa, há uma mescla de elementos religiosos e de fábulas que são acionados para entender a fala e as ações da protagonista Maria, chamada de Nhinhinha. Os personagens do conto apostam numa chave de entendimento do comportamento da menina - ela faria milagres-, embora percebamos que todos os episódios vistos como milagrosos, na realidade, poderiam ser pensados também como eventos comuns, se atentarmos à própria mescla de fábulas e religião a que o imaginário infantil está exposto. Guimarães Rosa explora, nesse conto, a potência dos eventos comuns e as diferentes formas de lidar com eles.
Guimarães Rosa constrói uma percepção da loucura por meio da linguagem em "Sorôco, sua mãe, sua filha", conto de Primeiras estórias. No início do século XX, o saber moderno, a modernidade urbana e a consolidação da psiquiatria instauram que a loucura deve ser excluída do convívio das grandes cidades e da sociedade. Já, no conto, há várias estratégias de inclusão, propiciadas pela linguagem.
O conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” é central dentro de Sagarana, ideia defendida pelo próprio Guimarães Rosa. Encontramos questões dessa narrativa ecoando por toda a obra de Rosa, chegando mesmo a dialogar com o único romance do escritor, Grande Sertão: veredas. Faremos uma leitura do conto focalizando uma temática crucial na obra de Guimarães Rosa, o sistema de justiça presente no sertão brasileiro. O conto trata de uma aparente transformação do personagem principal do texto, Augusto Matraga: num primeiro momento da narrativa, o personagem leva uma vida de desmandos, associando-se a um perfil patriarcal; num segundo momento, passa a levar uma vida mais altruística, apega-se à religião e realiza uma espécie de justiça no sertão. Se apostamos na leitura que transforma Matraga em herói dos desvalidos no final do conto, compactuamos com uma percepção da realidade brasileira que não entende os jogos de poder entre mudança e permanência, entre bases modernas e oligárquicas que formam nosso tecido social. A justiça, no conto, portanto, é fortuita, aleatória e não um projeto definitivo de transformação social.
Este trabalho procura refletir sobre como grupos sociais diversos se relacionam no conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa. O conto mostra um episódio em que o jagunço Damázio das Siqueiras vai à procura de um médico para saber o significado da palavra famigerado. Um moço do Governo tinha chamado o jagunço por essa palavra e Damázio queria saber qual era o significado do vocábulo. Ao chegar ao médico, pergunta se famigerado era algo bom ou ruim. O médico, notando todas as implicações e consequências da sua resposta, opta por oferecer o significado positivo de famigerado e todos saem bem no episódio. No conto, vemos a discussão sobre as formas de poder fundadas no patrimonialismo e patriarcalismo se estranhando, num primeiro momento, com o Estado moderno, mas se conciliando no final. A conciliação tensa de todos os poderes nos faz pensar que tanto o Estado moderno quanto as formas de poder locais se retroalimentam formando uma sociedade brasileira de tipo nova, mas que mantém hábitos e estruturas antigas. Nessa configuração social, quase nada sobra para quem não faz parte desses centros de poder.