Meu primeiro contato com Clara Rowland aconteceu quando, em 2014, pleiteava eu uma bolsa de doutorado sanduíche na Universidade de Lisboa e, como a pretendia como tutora/co-orientadora,
apresentava-lhe um projeto de investigação sobre a escrita da violência em Rosa e que tentava unir este a Derrida, a bolsa não vingou, mas o contato e o projeto, estes, sim. Na entrevista que se segue, conversamos sobre a recepção, ou (não)recepção da literatura de Rosa e da literatura brasileira em Portugal, mas, principalmente, sobre um modo diverso de se ler e receber o texto rosiano. Deixemos, pois, falar o diálogo.
Este texto busca formular perguntas e problematizar a natureza da violência que se encena no conto “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa. Neste conto há um tipo de violência que está na ordem do absurdo, destituída de razão ou explicação aparentes. A violência que ali se encena, pela absurdidade e pela carência de fundo e razão, não parece admitir da crítica respostas satisfatórias, abalando, inclusive, os conceitos de representação e de representação da violência. “Meu tio o Iauaretê”, questionando as bases de qualquer racionalidade, se insere na ordem de uma violência
crua e desprovida de sentidos, impactante por sua carência de motivações aparentes além da dissolução de limites entre o humano e o animal – espécie de monstruosidade – e por sua esteriliadde. Interessa-nos a experiência abissal dessa violência que não se deixa reduzir e que mesmo depois do fim da fala dissemina-se para além do texto, incômoda e renitente. Tal leitura terá apoio teórico, principalmente, de Jacques Derrida.
Este texto parte de uma tentativa de aproximação de duas escrituras. De um lado, a de uma literatura pensante, nas palavras de Evando Nascimento, que é o Grande sertão: veredas; de outro, a escritura derridiana que, no pensamento da desconstrução, aponta possibilidades heterodoxas de interpretação da tradição. O escopo está na análise da cena de devoração de um macaco que era homem, no que se traça um paradoxo na escritura rosiana. Em paralelo a análises feitas por Derrida de cenas de devoração (simbólica ou não) de carne e de carne humana, as quais fazem parte de uma tradição “falogocêntrica” do Ocidente e traçam um imperativo da estrutura de dominação social, analisa-se a cena rosiana como inscrição problematizadora da tradição que associa determinados atos de comer à constituição essencialmente definidora do que é o ser humano dominante. Derrida afirma, em “Il fault bien manger”, que a estrutura social humana pressupõe e exige a ingestão “não criminosa” do cadáver, mesmo do cadáver humano. A cena rosiana, entretanto, insere-se como uma punção aterradora na estrutura social do sujeito humano, pois, ao passo que encerra o gesto estruturador das configurações de virilidade e humanidade, encerra também o gesto destruidor dos próprios do homem.
O trabalho discute questões da teoria da literatura ligadas à representação, ou mímesis, importante tema para os estudos literários. A mímesis é abordada em Grande sertão: veredas a partir da representação que Riobaldo faz de si ao contar suas vivências a seu interlocutor, o que o leva a uma catarse de si mesmo.
Jó Joaquim, personagem do conto “Desenrendo”, de Tutameia, pode ser visto como um temulento, cujo destino é constantemente alterado, seja pela operação do “passado – plástico e contraditório rascunho”, seja pelos constantes acontecimentos desviantes de suas metas traçadas. Os desvios de rotas obrigam-no a reinventar a história, ou, dito com Santiago-Sobrinho, que por sua vez o diz com Nietzsche, a incorporar uma “outra verdade, uma verdade não histórica”. Joseph Hillis Miller, em “Derrida’s Destinerrance”, lembra-nos que Derrida fala de “destinerrância” como uma “possibilidade fatal de errar por não se alcançar um objetivo pré-definido temporalmente”, como lembra Sérgio Bellei, “é um destino de tal modo comprometido por errâncias que corre o risco de não atingir jamais seu ponto final”. Tal errância, como dissemos, obriga o personagem a agir contrariamente ao logos, ou, a criar um mythos, racionalizado pela arbitrariedade de um narrador que põe a fábula em ata.
A proposta deste trabalho é discutir alguns aspectos e questões da Teoria da Literatura tendo como corpus literário o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Dentro da proposta a que nos dedicamos, discutimos, temas ligados à representação, ou mímesis, conceitos que os filósofos Platão e Aristóteles introduziram nos estudos que hoje chamamos literários e que são, por mérito, temas relevantes das adjacências literárias. A representação que em Platão era subversiva, que em Aristóteles era necessária, e que nos estudos é evidente, leva-nos a refletir acerca do constructo literário. A mímesis foi associada, no primeiro capítulo, aos mecanismos diegético da Memória, antia e venerada Deusa, passando pelas questões evidentes dos dois filósofos, a imitação e a representação, para chegar ao mecanismo diegético do narrador e, por não, único personagem do romance rosiano, que, ano final, nos leva a conclusões de que o que ele faz é apresentar-se - e não imitar ou representar - fazendo-o, antes de tudo, a si mesmo, e não ao interlocutor que parece acompanhá-lo durante toda a narrativa. Desta forma, ele nos leva a um outro aspecto inerente à mímesis, ou seja, à catarse que este narrador se fará promover.
Este estudo se propõe à análise das narrativas de violência e suas indeterminações na obra de Guimarães Rosa. Para tanto, estabeleceu-se uma aproximação entre o escritor mineiro e o filósofo franco-argelino Jacques Derrida. A partir do caráter altamente indecidível e indeterminante da escritura de João Guimarães Rosa, a leitura de Grande Sertão: Veredas e de narrativas como Desenredo, a série Zoo de Ave, Palavra, Meu tio o Iauaretê foi feita a luz de operadores textuais derridianos, tais como destinerrância, ex-apropriação, différance, soberania, acontecimento, falogocentrismo. Tal indecidibilidade terminou por fazer duas frentes de leitura: de um lado, leu-se o texto rosiano à luz da escritura derridiana, de outro, pode-se afirmar que também o texto derridiano foi lido à luz da escritura rosiana. Para tanto, foi necessária a atenção à força dos paradoxos e das aporias dessas duas escritas, de tal modo que o trabalho não faz a pergunta metafísica que é da ordem do que é? ou do como é? a violência na escritura rosiana. Assim, a análise se desdobra na tarefa de verificar como o texto rosiano põe em questão uma série de postulados da metafísica que regula os sentidos e aponta para um caminho em que estes deslizam e não se fixam em categorizações rígidas, valendo o axioma: "tudo é e não é".
No romance Grande Sertão:Veredas , de Guimarães Rosa, dentre os diálogos que o personagem protagonista Riobaldo estabelece, dois merecem destaque, aquele feito com o Diabo, um ser que,segundo o próprio Riobaldo, existe e não existe, conforme a maneira como a linguagem o busca, e um outro feito com ele mesmo, na intenção de conhecer a sua própria existência. Ao buscar um diálogo com o ser e o não-ser do Diabo, Riobaldo chega, consequentemente, a um diálogo consigo mesmo, posto que há a possibilidade de se ter feito um pacto com o Diabo, como fora dito, um ser que "é e não é". A dúvida do pacto com aquele que pode não existir, leva o personagem rosiano a uma dúvida quanto à própria existência, dessa forma, em sua narrativa, ele procura o sentido do existir, duvidando, muitas vezes, de sua veracidade. Ao especular sobre sua incerteza, Riobaldo acaba por chegar a uma catarse de seu ser, adquirindo a consciência de que o que existe, por fim, é o ser humano em sua travessia.