ISSN 2359-5191

15/06/2011 - Ano: 44 - Edição Nº: 48 - Sociedade - Instituto de Relações Internacionais
“Venezuela é farsa democrática”
Especialistas discutem o problema do sistema judiciário venezuelano

São Paulo (AUN - USP) - Para a diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI), professora Maria Hermínia de Almeida, “as instituições judiciais são importantes para a consolidação de regimes democráticos e para exercer o controle necessário dos outros poderes do Estado”. A situação dessas instituições na Venezuela atualmente foi o tema do encontro que teve a presença dos doutores Belisário dos Santos Junior, relator do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association (Associação de Advogados Internacionais), e do venezuelano Pedro Nikken, presidente da Comissão Internacional de Juristas (CIJ).

O fechamento do seminário “Democracia, Judiciário e Direitos Humanos na Venezuela hoje” ficou por conta do professor Paulo Sérgio Pinheiro, relator para a Venezuela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Práticas ditatoriais na Venezuela
“No meu país há mais dificuldades do que no resto da América do Sul”, afirma Pedro Nikken. Para o presidente da CIJ, “o que vem ocorrendo nos últimos 12 anos na Venezuela é o produto da infidelidade da democracia consigo mesma”.

Em um contexto de desesperança para os povos mais pobres, se apresentou um candidato à Presidência lhes oferecia um discurso social e político de mudanças. Sendo assim, o presidente Hugo Chávez ganha as eleições de 1998.

Nikken afirma que “para entender o que se passa na Venezuela, não se pode esquecer de que Chávez é um tenente-coronel”. A cultura militar de Chávez guia a sua linguagem e sua atitude frente aos adversários políticos. “Os adversários são inimigos e ele não vai às eleições, vai à guerra. Ele vem do mundo militar, onde é matar ou morrer”.

Logo após sua vitória, Hugo Chávez convoca uma Assembleia Constituinte. A Constituição de 1999 tem alguns pontos negativos como o privilégio de setores militares e a concentração de poder nas mãos do presidente. Apesar disso, os artigos referentes a outros campos como liberdade de expressão e educação são bastante positivos. “Era uma constituição muito avançada. Em termos de direitos humanos, era a melhor de todas da América do Sul na época. Parecia concluir-se um Estado de justiça e direito na República Bolivariana da Venezuela”, diz Nikken.

No entanto, na prática não foi isso que ocorreu. Logo a Assembleia Constituinte declarou a situação de emergência da Justiça, situação essa que já dura 12 anos, o que acabou com a estabilidade. Os juízes são, em sua maioria, nomeados e não se respeitam os concursos públicos. “Assim como são nomeados livremente, os tomadores de decisão que molestam o poder podem ser destituídos a qualquer momento, como aconteceu com a juíza Afiuni”, explica Nikken.

“Nesses últimos 12 anos, houve um período de cinco anos, que se encerrou em janeiro de 2011, no qual só havia parlamentares favoráveis ao governo no Parlamento da Venezuela”, diz Nikken. Diante de acusações de favorecimento do governo, a oposição venezuelana decidiu não participar da reeleição para tirar a legitimidade do Parlamento. “Isso foi um erro porque não tiraram a legitimidade e facilitaram o caminho ao exercício absoluto do poder”.

Ao longo dos anos, Hugo Chávez foi variando a direção do seu processo revolucionário que começou como um projeto nacionalista de conteúdo social e sempre se afirmou democrático. As forças democráticas que o apoiavam no princípio foram, então, abandonando o processo revolucionário. Hoje, o objetivo de Chávez é alcançar um modelo de socialismo como o implantado pela Revolução Cubana de 1959.

Nikken relembra a derrota do presidente no referendo de 2007, o qual consultou a população sobre a adoção de um modelo político semelhante ao cubano. “À medida que o presidente vai radicalizando o seu discurso, ele vai perdendo apoio”.

Nas eleições parlamentares de dezembro passado, por exemplo, a oposição foi eleita maioria no Parlamento com 52% dos votos. Todavia, o órgão eleitoral, que é dominado por simpatizantes do governo, realizou uma manobra política para reverter a maioria dos votos para os parlamentares do governo. “Isso é produto da manipulação e da farsa de um discurso democrático que não se corresponde com uma prática democrática”, diz Nikken.

Para o jurista, a prática hoje corresponde à prática da ditadura militar que o Brasil e outros países da América Latina conheceram bem. “Se a ditadura é a concentração absoluta de poder nas mãos de uma pessoa, na Venezuela nós temos uma ditadura porque a Constituição não é respeitada e o poder está com Chávez”.

Atualmente, por decisão desse Parlamento sem oposição, o presidente venezuelano tem o direito de legislar por decretos, inclusive sobre o direito penal. “Não se pode impor uma pena sem lei, mas Chávez já decretou delitos”, diz Nikken.

Outra manobra parlamentar do governo foi aprovar um pacote de leis que põem em vigor a reforma constitucional derrotada em 2007 pelo voto popular. “Essas leis não foram aplicadas e nem serão porque teremos eleições presidenciais ano que vem. O presidente sabe que seu discurso mais radical produz rejeição na população. Hoje, seu discurso está mais voltado às questões que preocupam a todos como a pobreza, por exemplo”.

Nikken afirma que não há no país movimentos populares chavistas. A grande maioria dos movimentos é crítica em relação ao governo – essa foi a grande falha do projeto de Chávez. O presidente tenta deslegitimar as manifestações estigmatizando os grupos como “inimigos da pátria” ou “agentes do imperialismo”.

“A Venezuela é um país que pode ser uma democracia, mas que tem o poder concentrado. E a vítima desse apetite presidencial é o sistema judiciário”, diz Nikken. “Os juízes não tomam decisões contra o Estado em quase nenhuma circunstância. Há um estudo que mostra que, no ano de 2007, houve 250 recursos contra atos de poder público, dos quais 81% foram declarados sem julgamento”.

Existem na Venezuela magistrados que são partidários da revolução de Chávez e realizam julgamentos conforme seus princípios. “É possível que haja algum magistrado que não está de acordo, mas nunca saberemos, já que ele nunca se atreverá a dizer”, ressalta Nikken.

A Venezuela tem sido condenada em diversas instâncias internacionais, inclusive pela CIDH. Em geral, os países americanos cumprem as decisões da Comissão ou, ao menos, mantém uma boa relação com a instituição. Não é o que acontece na Venezuela, o único país do continente onde a CICH não tem autorização para entrar.

“Paulo Sérgio Pinheiro, que é uma autoridade mundial reconhecida pelo seu compromisso com a democracia e com os direitos humanos, é o relator para Venezuela da CIDH. No entanto, ele só tem recebido respostas negativas por parte do governo venezuelano. Tudo isso mostra a farsa democrática do governo da Venezuela que, no fundo, é um governo eleito, mas também militar”, diz Nikken.

Em 2002, Hugo Chávez sofreu uma tentativa de golpe de Estado. Na ocasião, a CIDH zelou pela integridade do presidente. Chávez usa essa intervenção como a prova de que seu governo foi reconhecido e legitimado pela Comissão. Esse suposto reconhecimento é o que justifica hoje a não entrada da CIDH no país.

O Caso Afiuni
O caso da juíza Maria Lourdes Afiuni é um exemplo contundente de como o Poder Judiciário venezuelano sofre interferências, em especial do Poder Executivo, e não age de forma independente e imparcial.

A situação foi relatada pelo relatório “A desconfiança na Justiça: o caso Afiuni e a independência do judiciário na Venezuela”, o qual foi resultado de uma visita do Instituto de Direitos Humanos da International Bar Association à Venezuela em fevereiro deste ano.

Entre outras conclusões, verificou-se que o presidente Hugo Chávez, valendo-se do fato que o Parlamento estava sem representantes da oposição, passou a nomear e destituir juízes. Atualmente o número de juízes provisórios é maior do que o de juízes titulares e 70% dos promotores são provisórios. Além disso, o colégio de advogados de Caracas está sob intervenção.

Chama a atenção o fato de que os juízes afastados não passam por um processo administrativo com garantias de defesa, mas recebem uma carta que diz “muito obrigado, o senhor não é mais juiz”, conta Belisário dos Santos, o redator do relatório.

“Qual é a garantia que a magistratura e a sociedade têm de que os juízes realizarão sua jurisdição de forma plena, sendo que a qualquer momento eles podem ser retirados?”, questiona Santos.

Santos expôs o caso Afiuni como “paradigma desse processo de desinstitucionalização progressiva que está sofrendo a Venezuela”. A juíza titular Maria Lourdes Afiuni julgou o caso de um indivíduo envolvido em processos econômicos que já estava sob prisão preventiva há três anos, enquanto o tempo máximo previsto pelo Código Penal venezuelano é de dois anos. Afiuni considerou, então, que tal prisão era arbitrária e ilegal.

A juíza convocou duas audiências, nas quais a promotoria não apareceu. Diante da situação, Afiuni liberou o preso, mas converteu a punição em uma retenção, ou seja, o indivíduo fica livre, porém vinculado ao juizado que detém seus documentos.

“Quinze minutos depois da sentença, o promotor que não compareceu à audiência aparece na sala da juíza e a detém”, conta Santos. Ao contrário do que prevê a Constituição da Venezuela, a juíza não foi informada do motivo pelo qual estava sendo presa. Sabe-se, no entanto, que o indivíduo liberado era um preso político de Chávez.

“Dois dias depois, o presidente Chávez vai à televisão dizer que ‘aquela bandida’ deveria ser condenada a 35 anos de prisão, mudando-se o que tiver que ser mudado”, diz Santos. Essas “mudanças” seriam necessárias já que a lei bolivariana impede qualquer pessoa a ser condenada mais de 30 anos.

Segundo o relatório, o presidente Chávez declarou publicamente que esse caso deveria servir de exemplo para os outros juízes, o que “foi uma intervenção direta e séria na administração da justiça, que minou os princípios da separação dos Poderes e do estado de Direito”.

O relatório aponta ainda múltiplas violações às garantias judiciais no processo contra a juíza tais como “violação do direito de liberdade pessoal, falta de informação adequada sobre a acusação, ao direito de defesa, à presunção de inocência e a falta de procedimento para suspendê-la de seu cargo”.

Presa desde dezembro de 2009, a juíza conseguiu a detenção domiciliar em fevereiro deste ano, “curiosamente” na mesma época em que a International Bar Association visitava a Venezuela. Enquanto esteve detida em um centro de reclusão para mulheres, Afiuni teve graves complicações de saúde devido à falta de assistência médica e teve que passar por cirurgias delicadas. Além disso, foi ameaçada de morte.

“Afiuni era juíza titular penal e foi enviada para o presídio onde estavam as pessoas presas por ela. As prisões venezuelanas são as piores do mundo em termos de violência interna. Em média, 450 pessoas morrem por ano nos presídios. A juíza viveu momentos terríveis em uma situação de insalubridade”, diz Santos.

O relatório também traz recomendações à Venezuela no sentido de garantir à Afiuni o direito ao julgamento respeitando-se a Constituição. Dadas as circunstâncias atuais da política venezuelana, tais recomendações serão provavelmente ignoradas pelo governo.

Para Santos, a situação na Venezuela é grave: “Chávez está autorizado a legislar sobre todos os âmbitos desde transportes a políticas de defesa nacional. Há um discurso de que esta agenda da liberdade de expressão, de um sistema judiciário que funciona, de defesa dos direitos humanos é uma agenda europeia. Em 2009, a presidente do Supremo Tribunal disse que o princípio de separação dos poderes debilita o Estado. Outro juiz venezuelano declarou que a função do judiciário é apoiar a política do governo nacional, que busca um socialismo bolivariano e democrático, e disse também que a justiça não é um valor, é um sentimento, ou seja, a lei que foi justa ontem pode não ser mais justa hoje”.

“O caso Afiuni é a cara da violação dos direitos humanos hoje”, diz Santos. O jurista finaliza sua fala pedindo que o caso seja divulgado para que se deflagre uma campanha, uma vez que a juíza ainda será julgada.

Os problemas da Venezuela
Segundo Paulo Sérgio Pinheiro, o caso na Venezuela é complicado por causa da percepção que se tem do país. “Para a esquerda europeia, Chávez está comandando uma revolução. No Brasil, a percepção marcada pela visibilidade de um líder muito carismático que tem uma validação eleitoral”.

Pinheiro lista alguns problemas da Venezuela hoje tais como falta de liberdade de organização da sociedade civil, falta de liberdade de expressão e fechamento de canais de rádio e TV, além de uma das maiores taxas de homicídios do continente.

“Os opositores são tratados como inimigos, inclusive as entidades de direitos humanos. A vida de pessoas parecidas conosco na Venezuela é um inferno por causa de perseguições. No século 21, a vinculação com o modelo de revolução cubana é um anacronismo”, diz Pinheiro.

Para a professora Maria Hermínia, “a democracia aguenta crises e mobilizações, mas dificilmente aguenta a polarização política que é estimulada e promovida a partir do governo. Estamos vendo isso na Venezuela”. O professor do IRI, Sérgio Abreu, afirma que “nenhuma sociedade suporta, mesmo em nome da redução de desigualdades, prescindir do Estado de direito. A garantia proporcionada pelas leis e a independência do Judiciário é uma conquista fundamental de direitos humanos e das sociedades democráticas”.

“Aqui no Brasil tudo é difícil. Então, nós temos a obrigação de termos uma visão complexa do que é o processo político da Venezuela para exercermos essa solidariedade”, completa Pinheiro.

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