A partir da situação de obras-limite como Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (e o Finnegans Wake, de James Joyce, por exemplo) o texto apresenta um argumento em favor da traduzibilidade da literatura como tal e, especialmente, das obras literárias mais radicais, propondo inclusive que essa sua radicalidade torna ainda mais central sua condição de “traduzíveis”. Ao longo de uma comparação entre obras literárias, musicais e pictóricas, e seus diferentes conceitos de original e reprodução, o texto sustenta que a reprodutibilidade é por necessidade corolário da base linguística da literatura, o que acarreta a traduzibilidade necessária como premissa menor, derivada, e, portanto, quase inquestionável.
A crítica se debruçou exaustivamente sobre a duplicidade do Grande sertão: veredas, apontando a sua função estrutural seja para a forma, seja para o conteúdo do romance. Seguindo a esteira aberta por João Adolfo Hansen, pode-se dizer que tal duplicidade, antes de ser valor em si ou caminho para a unidade, constitui as veredas pela qual o sertão se abre à multiplicidade, e a encruzilhada se torna redemoinho. Para tanto, há que se atentar para o papel que a interlocução, enquanto alternância colaborativa entre fala e escuta, escrita e (re)leitura, desempenham tanto no dizer de Riobaldo (“as falas na fala”) quanto na sua concepção metafísica (“a vida é mutirão de todos”). Perscrutando a importância de Quelemém, interlocutor das estórias narradas, pode-se perceber como a história de Riobaldo se converte em estória, atravessando gêneros: através (e por meio) da interlocução, o protagonista tece a trama de sua vida do compósito das outras vidas reais e imaginárias, havidas ou ouvidas (veredas), que formam a sua, dando corpo aos seus muitos fios e chegando a um estado subjetivo – perdido com a morte de Diadorim – que agora se apresenta múltiplo, por meio do seu agenciamento enunciativo, através de um(a) a-gente poético(a).
Este artigo tem por objetivo examinar algumas características presentes em escritos de ambiência urbana de João Guimarães Rosa publicados em seus livros póstumos – Estas estórias e Ave, palavra –, agrupando-os segundo certas afinidades formais ou temáticas: o estilo fragmentado e a atitude ambivalente com relação à cidade; à representação dos males do regime nazista; e à figuração de sujeitos opressos pelo sistema de sociabilidades que a urbe impõe. Num segundo momento, os textos urbanos são contrapostos à literatura sertaneja de Guimarães Rosa e distinguidos, especialmente, pelo enfraquecimento do modo ficcional promovido pelo recurso amplo à voz autobiográfica e pelo emprego de um discurso mais reflexivo ou sentencioso.
Este artigo tem por objetivo analisar as imagens do povo presentes na obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Para tanto, propõe-se fazer uma crítica das noções de comunidade e povo, configuradas pelo projeto de nação moderno da década de 1950. A crítica visa repensar o sentido totalizante dessas duas concepções. A leitura de Grande sertão: veredas pretende identificar na obra conceitos de povo e comunidade que escapam às reconfigurações modernas de nação. Nesse sentido, a partir das obras de Roberto Esposito, Didi-Huberman e Giorgio Agamben, analisa-se a população sertaneja não como uma união coesa, mas como uma multiplicidade de singularidades que habitam e convivem numa dimensão comunitária da vida. O domínio do comum é entendido como uma modalidade de ser-com, em que o convívio com o outro não é um reforço da identidade, mas sim uma expropriação de si, das fronteiras da subjetividade. Ao analisar os diversos povos do sertão, inclusive aqueles que foram mortos e cujos sofrimentos são testemunhados por Riobaldo, busca-se pensar num conceito de justiça relacionado com a memória que dá visibilidade a essas populações esquecidas do sertão.
O propósito deste artigo é investigar a filosofia da forma na escrita rosiana a partir das referências ao mundo natural encontradas no Grande sertão: veredas. Desse modo, busca-se não apenas iluminar a característica invenção rosiana, mas também descortinar uma metafísica, ou melhor, uma compreensão da metafísica que, em parte, afina-se com a contemporânea “virada ontológica”, que hoje instiga os estudos antropológicos, filosóficos e literários. Como identificado na ficção rosiana, a formulação de metafísicas distintas visa desconstruir a tradicional metafísica da representação de modo mais eficaz do que a crítica “pós-moderna” a ela dirigida. De fato, a variedade das espécies viventes que marca a escrita de Rosa termina por aproximar comparativamente metafísicas, perspectivas que se reúnem ao redor de um núcleo poético comum, “vital e irrepresentável” (ROWLAND, 2011, p. 18). Logo, este artigo privilegia a vida das plantas a fim de ressaltar a forma movente ou, ainda, o informe, que Rosa cultiva como ser da ficção. Como hipótese de trabalho, notamos que a variedade das formas das flores é aproximada do amor, assim compondo uma morfologia, e que a vingança, que conduz à guerra que entrecorta o mato, é o modo como essa cultura das formas moventes constrói sentidos e dá origem a novas formas. Como conclusão, veremos que a metafísica das plantas, tal como trabalhada no Grande sertão, ilumina a proposta filosófica de Rosa e coloca sua obra sob uma nova luz.
O Diário de guerra, título provisório das anotações feitas por João Guimarães Rosa durante o período em que exerceu o cargo de vice-cônsul na Alemanha, demonstra, mesmo se de forma incipiente, o distanciamento consciente que mantinha em relação às ações bélicas dos primeiros anos da Segunda Guerra. Esse distanciamento não se explica apenas por sua posição de diplomata, mas resulta de uma aversão profunda contra a violação da dignidade humana, cometida em nome da ideologia nazista. Rosa foge das questões políticas e prefere se interessar por fenômenos naturais encontrados na Alemanha, mas não hesita em mostrar sua revolta quando o nazismo fere seus princípios humanistas – cuja defesa não deixa de ser política.
Quando um autor expõe suas leituras e o modo como avalia diferentes práticas literárias, ele oferece uma oportunidade de compreendermos particularidades da prática literária, percebidas a partir de um ponto de vista interno. Mais que curiosa, essa visão interna nos dá pistas de mecanismos e escolhas relativas à percepção de valores literários. Os escritores, agentes literários dotados de um singular capital simbólico, podem perceber, elucidar e avaliar a literatura de seus contemporâneos, associando suas assinaturas aos nomes dos que desejam integrar o campo literário, por meio da crítica literária, desdobrando-se em um escritor-crítico. Outra forma de intervenção no campo literário por parte de escritores é a participação como jurados de concursos de literatura, cumprindo então um papel avaliativo. Guimarães Rosa não fazia crítica literária publicamente. Negava-se, sobretudo, a comentar seus contemporâneos, mas publicou textos em que ficcionalizou escritores, apresentando-os criticamente. Além desse jogo lúdico, pouco comentado (talvez pelo tom enigmático da brincadeira), exerceu em seus manuscritos algumas facetas de escritor-crítico, como vemos em suas anotações como jurado do prêmio Walmap (1966). Neste artigo, abordaremos textos sobre o concurso Humberto de Campos (1937), quando Guimarães Rosa foi julgado por Graciliano Ramos, e as anotações do prêmio Walmap, quando o autor mineiro assume o lugar de avaliador, observando quais critérios são reatualizados pelos dois escritores para a compreensão de seus contemporâneos. Além disso, abordaremos os poucos textos assinados por Guimarães Rosa para apresentar escritores estreantes, nos quais podemos perceber outro éthos autoral em cena.
Este estudo lê o romance Grande sertão: veredas e as influências da arte pictórica na composição de sua narrativa. A partir dos registros do autor encontrados no material arquivado no Instituto de Estudos Brasileiros, e da apreciação de Guimarães Rosa pela pintura, apresentamos relações entre a narrativa de primeira pessoa e as variações de cor no romance. Esses jogos de luz e sombras nos ajudaram a ler a intricada dubiedade que rege a vida, a violência e a sexualidade de Riobaldo.
A partir da leitura de Corpo de baile, de João Guimarães Rosa, pretende-se discutir relações entre literatura e dança nos desdobramentos estéticos do texto rosiano. Para isso, apresenta-se um panorama sobre história e formação de “corpo de baile” em dança (BOURCIER, 2001) e sugere-se uma abordagem sobre a percepção de um “corpo de baile”, especialmente nas novelas Campo geral, Uma estória de amor, A estória de Lélio e Lina e Buriti. Parte-se da concepção de que a dança é um dos elementos dinamizadores dos enredos de Corpo de baile, além de ser um traço importante na representação de personagens, sobretudo na esfera feminina. Este artigo, por meio de uma análise comparativa, apresenta contribuições para o enfoque interartes nos estudos da obra rosiana.
Em 1947, uma expedição organizada pela Universidade do Brasil (UB), no Rio de Janeiro, rumou para Mato Grosso e percorreu Campo Grande, Corumbá, Nhecolândia e o Pantanal Mato-Grossense. O grupo foi composto por estudantes da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, coordenados pelo professor Hilgard O’Reilly Sternberg, e estudantes do Instituto Rio Branco, liderados pelo diplomata, professor e escritor João Guimarães Rosa. Informações sobre esta expedição pouco aparecem nos registros de literatura e arte, constando apenas em passagens vagas e incompletas sobre o período na bibliografia de Rosa. A história desta expedição será brevemente apresentada com base numa investigação (ainda em processo) em arquivos públicos e privados. Uma reflexão baseada no discurso de posse de Rosa na Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, abordará a sua relação com a poesia e a geografia. O texto “Sanga Puytã” (1947), do autor, será explorado em um exercício para compor um esboço da paisagem da expedição. O artigo se encerra com a argumentação sobre o uso da linguagem verbo-visual e de ferramentas para compor a história da expedição de1947 ao Pantanal.
Três dias após tomar posse na Academia Brasileira de Letras, João Guimarães Rosa, o mais recente imortal da Casa fundada por Machado de Assis, vem a falecer, deixando consternados não apenas seus confrades, mas o país inteiro. Este trabalho tem por objetivo apresentar um estudo sobre a imortalidade do escritor de Cordisburgo em três movimentos. Com base nas reflexões de Maurice Blanchot, em “A literatura e o direito à morte” (1997), investiga-se as relações entre morte e imortalidade: primeiro, tentando compreender a repercussão que o evento da morte de Rosa teve na mídia nacional, a partir de hemeroteca criada e mantida pela Academia Brasileira de Letras; segundo, analisando a imortalidade através da linguagem, ao evidenciar de que maneira o autor se imortaliza com sua literatura e pelos desdobramentos crítico-criativos que sua obra provocou; e, terceiro, procurando compreender como o autor imiscui-se em sua própria literatura ao fazer-se personagem de si mesmo, imortalizando-se na e pela linguagem.