Um dia longe de casa
Por: Isabel Briskievicz Teixeira
Editora: Sophia Vieira
Acordo mais um dia. Imóvel, abro os olhos e vejo o azul sobre minha cabeça. Meus olhos quase se fecham ao encontrar tanta luz, mas logo se acostumam. Como primeira tarefa diária, me preparo pra tomar banho e vou até o pequeno lago, que nós compartilhamos com os humanos em seus barquinhos. Primeiro uma pata, depois outra. A água morna molha meu corpo e minha mente viaja.
Há tempos que tomo banho por aqui. Às vezes sozinha, às vezes em bando. Mas sempre aqui, desde filhote. As flores, a grama, a terra; tudo tem cheiro de lar. Meus conhecidos passarinhos mostram que a melodia vem de todo lugar. Até enchem o saco. Um banho em silêncio já virou raridade – mas isso é assunto para outro momento.
Num fatídico dia, parafraseando os homens, tive outros problemas me importunando além da poluição sonora dos bem-te-vis. Eu me perdi num passeio, junto com os meus filhotes.
Nós estávamos tranquilos nadando pelo nosso lago quando um deles – e é lógico que foi o mais novo – tomou frente no caminho, conduzindo seus irmãos para um lado que eu não conhecia. Depois do quase atropelamento pelos barcos, ele encontrou uma saída que dá para o Rio Grande, um outro lugar ao lado de casa, mas em que não ousamos nadar. Entrei em desespero.
Fui atrás, mas ele estava nadando rápido demais. Minha patinha ainda dolorida de uma remada humana me deixava mais devagar que um filhotinho. Quando o alcancei, já era tarde: eu e meus seis bebês já estávamos no que chamam de “rio”. Para mim, não era bem um rio que molhava o nosso corpo.
Tudo era ruim. A água lamacenta, as sujeiras boiando, os objetos enroscando nas nossas patas. Onde estavam as árvores, os bem-te-vis? Só vi ratos. Odeio ratos. Estão vendo? Tive saudade até do que me incomodava, eu não conhecia essa sujeira. Fiquei me perguntando como as pessoas aguentam viver por aqui, mas lembrei que elas não vivem. Só os ratos.
Mãe, aflita que sou, quis sair de lá o mais rápido possível. Imagine se algum dos meus filhotes bebesse um gole daquela água? É doença na certa, acho que nem os nossos carrapatos sobreviveriam a tanta poluição. Quando alcancei o 06, chamei os outros para virem junto. Nadamos, nadamos, e nadamos. Ao chegarmos na pequeníssima borda, veio mais um problema: não dava para subir.
Tentei, escorreguei e caí. Eles tentaram também, várias vezes. Por algum milagre, depois de muito tempo, finquei meus dedos naquela terra escorregadia e abri caminho. Depois, subimos. Fiz uma contagem rápida e suspirei, estavam todos comigo. Todos sãos e salvos (e sujismundos). Achamos a saída e voltamos para casa.
Até hoje, minha cabeça pensa que isso poderia facilmente ter sido um pesadelo. Eu mesma nunca tinha conhecido aquela parte do meu mundo, apenas ouvido falar dele, e nem nas histórias era tão ruim. Fico triste que meus filhotes a tenham conhecido tão cedo e fico ainda mais triste em saber que aquela é a realidade de milhares de companheiros de espécie.
Algo tampa a visão vermelha que meus olhos têm quando estão fechados sob a luz do sol. Abro minhas pálpebras e está lá, em cima de mim, o bem-te-vi maldito bicando as minhas costas.
Dessa vez, acho que vou deixar passar… ele é minha casa também.