O artigo toma por objeto a articulação voz e linguagem na obra Ó (2008), de Nuno Ramos, atentando à correlação desta bipartição à polaridade cultura e natureza, conforme consta na Política, de Aristóteles. Infere-se que Ramos elabora uma descida da linguagem à voz, procedimento que pode ser entendido como a inversão do esquema traçado por Padre Antônio Vieira no sermão “Nossa senhora do ó” (1640), no qual a voz é submetida à linguagem, o corpo ao espírito. Doravante, elegeremos o conto “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães Rosa, como um possível precursor da expressão “ó” por fazer o ruído animal atravessar a comunicação, embora nossa conclusão seja a de que Nuno Ramos propõe uma decida de mão única do espírito à animalidade, do lógos à phoné, o que nos permitiria vincular sua humanista teoria da separação entre cultura e natureza àquela proposta pelo filósofo Giorgio Agamben; enquanto em Rosa haveria um procedimento perspectivista, como o teorizado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, segundo o qual a natureza seria capaz também de possuir linguagem, saber.
Objetiva-se neste estudo realizar uma análise comparativa acerca da linguagem como elemento de transformação do homem nos contos A menina de lá, do escritor brasileiro do segundo quartel do século XX João Guimarães Rosa, e A menina sem palavra, do escritor Moçambicano Mia Couto, artista e pensador contemporâneo. A abordagem aqui proposta parte do pressuposto de que ambos os contos discutem linguagem, comunicação e infância a partir de um olhar muito perspicaz, no qual a palavra assume o papel de força transformadora, ressignificando a própria ideia de comunicação e contribuindo para a humanização das relações sociais.
Esta pesquisa pretende analisar a retradução do romance brasileiro Grande Sertão: Veredas para a língua francesa realizada por Maryvonne Lapouge-Pettorelli em 1991. A proposta se insere na área dos Estudos da Tradução e se propõe a discutir questões relacionadas à importância e à autonomia
do ato tradutório e aos fatores que influenciaram o processo tradutório dessa obra. A análise traz à tona as relações entre tradução, contexto cultural e sistema literário, demonstrando que o processo de recriação é afetado não apenas pela forma como o texto será traduzido, mas também pelo momento em que determinada cultura solicita a tradução. A pesquisa inclui reflexões sobre as estratégias de tradução e de importação responsáveis pela escolha dessa obra, identificando algumas soluções encontradas pela tradutora francesa para a recriação de elementos linguístico-culturais específicos do sertão brasileiro e de Guimarães Rosa.
Este artigo analisa a relação homem-animal no conto “meu tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa. Entende-se aqui que a metamorfose física, que ocorre ao final da história, é parte de uma transformação maior e mais completa, que antecede a primeira e se torna visível nos hábitos, na linguagem, nos sentimentos e nos gostos do onceiro-narrador. O artigo concluiu que a metamorfose, no conto rosiano, não ocorre em um movimento brusco e inesperado, mas em um longo processo de mudança de identidade, no qual a cultura e a humanidade são rejeitadas em favor da natureza ancestral.
O presente ensaio tem por objeto ser um exercício metodológico, ao tentar estabelecer uma ponte entre a Literatura e a Geografia, mais especificamente entre a obra Sagarana de João Guimarães Rosa, e os aportes teóricos da Geografia Cultural, fundamentada em categoriais analíticas como região cultural e gênero de vida. A obra Sagarana apresenta-se enquanto um sertão literário a ser desvendado pelo leitor, que no caso em questão nos é apresentado por dois contos; São Marcos e Corpo Fechado. A partir de fragmentos dos contos, foram identificadas algumas dimensões consideradas identificadoras do gênero de vida das gentes do sertão, como a religiosidade e a valentia. A partir dessas duas dimensões do gênero de vida, torna-se clara sua especificidade, não só geográfica (em relação ao meio), mas também nas construções sociais que identificam as gentes do sertão.
A proposta inicial deste trabalho era mapear e analisar as superstições presentes ao longo do romance 'Grande Sertão: Veredas' de João Guimarães Rosa. Porém, no decorrer da pesquisa, o tema superstição se mistura com religião e cultura popular de tal forma que se torna difícil separá-los. Assim, contemplaremos a inter-relação entre os três temas, que resulta na base para a construção do romance, e principalmente na influência que isso terá sobre as reflexões acerca da própria existência feitas pelo narrador, Riobaldo.
A presente reflexão analisa duas narrativas de Guimarães Rosa, Cara-de-Bronze e O recado do morro, a partir do agregamento da voz musical à suas tessituras para, assim, verificar de que modo o substrato cultural é utilizado como mediação da dimensão estética na obra rosiana, cuja profusão de palavras, cria uma terceira cultura, derivada de outras duas, a popular e a erudita. Para tanto, a abordagem parte das ideias de Alfredo Bosi sobre dialética cultural, condensadas em Dialética da colonização (1992) e Céu, Inferno (2003), cuja síntese circunscreve a relação das culturas sociais na criação cultural-literária brasileira.
Esta reflexão, que toma como corpus a narrativa Cara-de-bronze, de João Guimarães Rosa, evidencia a questão da transubstanciação da Idade Média simbólica em sertão mítico literário, cuja articulação discursiva, entendida como plano simbólico, delineia a busca do sagrado como ritual de criação poética. Tal criação, ao se edificar em dois níveis ficcionais possíveis, deflagra uma encenação mítico-simbólica, cuja estrutura inscreve o ritual de eterno retorno às origens sagradas, seja na instância do humano, seja na do discurso.
A imagem poética, graças a essa realidade nova que representa, permite ao leitor ver diferentemente, ver outras coisas que a palavra esconde e, nessa diferença, a imagem impõe um reconhecimento e uma representação de mundo mais ampla, exigindo uma disponibilidade e uma abertura que, em última análise, são compartilhadas pelo poeta e seu leitor. Nesse caso, partindo-se do texto “Partida do audaz navegante”, contido em Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, espera-se verificar as diferentes formas de representação poética na narrativa ficcional de Rosa, observando, para tanto, os elementos e estruturas literárias e discursivas. Com a contribuição bibliográfica de críticos e teóricos renomados, espera-se desenhar algumas linhas de força que fazem do texto de Rosa uma experiência de prosa e poesia.
Numa perspectiva de análise que considera literatura e seus suportes de publicação inseparáveis, este artigo refere-se à literatura de Guimarães Rosa como tributária de códigos e matrizes eruditas, e também de uma cultura de massa brasileira, dos anos 1940 e 1950. Em alguma medida esteticamente devedora de artistas plásticos que ilustram seus livros, presumidamente disponível para intensas trocas intertextuais dos anos do Após-Guerra e trocas intelectuais do pensamento social do Brasil interpretado a partir dos anos 1930, à literatura de Guimarães Rosa pode-se acrescentar a intervenção de itens e materiais identificados a uma cultura de massa, evidentemente retrabalhados pelo escritor no registro de sua invenção e de seu fazer artístico erudito e pluriliterário. Pode-se avaliar, assim, numa época de grande interação de textos artísticos e interpretativos do Brasil à disposição das artes, a sofisticação com que o escritor, pela verdade própria da literatura, pôde figurar o Brasil, revisando a máxima da impossibilidade literária de interação erudição e massa numa obra da qual a crítica fixou uma tradição analítica que a identifica mormente com a erudição. Não é só dos materiais da erudição que vive a obra rosiana. Evidenciar isso é o principal propósito deste artigo.
O presente artigo toma como base o espaço físico na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e visa investigar a problemática da violência e do poder, partindo da óptica do narrador Riobaldo, que constrói um sertão contraditório. É nessa esfera que barbárie e dominação produzem o coronelismo e o jaguncismo, frutos de uma situação colonial, de uma cultura europeia imposta e uma identidade negada. Com isso, configura-se um binário na sociedade patriarcal: o escravo e o dono da terra. A partir dessa estrutura, o sertão será lido sob a perspectiva teórica de Willi Bolle como alegoria do Brasil e reflexo do sistema político, econômico e social, lendo uma parte para compreender o todo, articulando transformações culturais e realidade brasileira por meio do pensamento sociológico da década 1930.
Com base no ideal de cultura de uma coletividade é possível a identificação do sujeito com o local. O local, entendido, aqui, como região e/ou espaço de pertencimento de uma sociedade a uma esfera comum que envolve a integralização de seus membros. A partir dessa premissa, intenta-se investigar nas manifestações literárias de Brasil e Moçambique as marcas culturais que deflagram o local nas regiões dos dois países. Para tanto, o corpus investigativo debruça-se sobre a seguinte questão: Como se dá a representação humana e da terra nas tradições localizadas trazidas pela ficção? Procurando explorar tal objetivo, delimitou-se dois contos da coletânea de contos Primeiras Estórias (1967), de Guimarães Rosa e outros dois da coletânea O fio das missangas (2009), de Mia Couto a fim de estabelecer um elo entre o local brasileiro e o local moçambicano. A pesquisa possui caráter bibliográfico atrelando os referenciais teóricos aos textos ficcionais, com enfoque literário-sociológico e histórico.
A obra “Sagarana”, de Guimarães Rosa, torna-se singular à medida que suas as narrativas são constituídas de marcas particulares: linguagem, traços e marcas inerentes ao sertão mineiro. Fazendo abordagens a partir dos contos de “Sagarana”, o objetivo do presente texto é desenvolver algumas discussões sobre região, regionalidade, regionalismo e regional no campo da literatura, percebendo que cultura e identidade, bem como produções discursivas caracterizam, simbolicamente, uma região; reflexões possíveis a partir das contribuições de Arendt (2012), Barcia (2004), Bourdieu (1996), Certeau (1994), e Joachimsthaler (2009). No tocante aos contos, é possível qualificá-los como regionais, ao passo que transcendem aspectos como linguagem, léxico, visões de mundo, costumes e substratos míticos, constituindo traços pertencentes a uma região.