O ato de ilustrar é, também, o ato de interpretar e reescrever e, por isso, é uma forma de tornar o discurso polifônico e híbrido, dada à abertura de significação que as imagens possibilitam. E quando essas imagens se originam da leitura e do estudo do romance Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa, a intertextualidade se faz presente e as travessias entre os significados se multiplicam. Tecer uma dessas travessias é, pois, a proposta deste trabalho que tem como foco ilustrações do livro Imagens do Grande Sertão, do artista plástico mineiro Arlindo Daibert (1998). Cinco das 72 imagens da obra são aqui discutidas, considerando o conceito de intertextualidade segundo perspectiva de Bonnici (2009) e, ainda, tendo por base autores como Souza (1999; 2002), que elabora considerações sobre a crítica literária hoje; Guimarães (1998), que trata da obra de Daibert (1998); e Pereira (2009), no que se refere à ilustração. Nesse diálogo entre artes plásticas e literatura, busca-se, portanto, perceber algumas das travessias interpretativas pelas quais o sertão flui.
Em 1982, o artista plástico Arlindo Daibert elabora uma série de 20 xilogravuras inspiradas no romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. As tensões entre escritura e oralidade, bem e mal, masculino e feminino, tão latentes no romance roseano, são ressignificadas nas gravuras de Daibert. Em Maria Mutema, xilo da série que se refere ao episódio em que a personagem Maria Mutema mata o marido e o padre pelo ouvido (o primeiro com chumbo e o segundo com mentiras no confessionário) a personagem é representada por um monstro híbrido. As imagens de Daibert não tem caráter meramente ilustrativo, mas dialogam com a obra roseana fazendo ecoar outros níveis de leitura e interpretação do texto escrito.
O texto busca refletir sobre algumas passagens da trajetória artística e intelectual do artista plástico mineiro Arlindo Daibert que antecipam e iluminam aspectos da série G.S.:V, realizada por ele entre 1981 e 1993 como uma tradução plástica do romance de João Guimarães Rosa. O texto trata com especial interesse de duas questões que emergem e se entrecruzam na obra e nas preocupações teóricas do artista — as relações entre a imagem e a escrita e a apropriação crítica das tradições pictóricas e literárias —, buscando compreender como elas marcam o desenvolvimento de sua concepção de desenho como "forma de raciocínio", e de seu trabalho em G.S.:V. como uma espécie de "ensaio plástico" que não se limita ao interior da obra literária, mas explora suas relações com o biográfico e o auto-biográfico, com o dado histórico, com elementos do cotidiano, com referências artísticas e culturais diversas, com a tradição e a contemporaneidade, revelando uma visão da arte como "diário de bordo" em ininterrupto diálogo com a realidade.
O trabalho toma a série de setenta e um desenhos, colagens, aquarelas e xilogravuras G.S.:V. – uma tradução em imagens do romance Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, feita pelo artista plástico mineiro Arlindo Daibert – como recriação de processos descritivos e descrição de processos criativos do romance. Parte-se do pressuposto de que, ao se esquivar do compromisso tradicional da ilustração com o encadeamento e o conteúdo narrativos, de modo coerente com sua concepção de desenho como forma de raciocínio e com seu próprio projeto artístico, Daibert consegue retomar e desdobrar algumas das questões estéticas, culturais e históricas mais importantes do romance, através do estabelecimento de uma cartografia que se caracteriza antes pela mescla de referências que pela fixação de limites entre elas. Buscou-se abordar essas questões de forma a estabelecer, adicionalmente, um estreito diálogo com a crítica especializada da obra de Guimarães Rosa, não a fim de legitimar as reflexões visuais através da crítica literária, mas ao contrário, a fim de mostrar o quanto ambas podem ganhar em mútua colaboração.
Instituto de Cultura e Arte, Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Em 1982, o artista plástico Arlindo Daibert elabora uma série de vinte xilogravuras inspiradas no romance Grande Sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. Adotando uma postura de tradutor, Arlindo Daibert investiga as possibilidades de recriação a partir do ponto de vista da mudança de linguagens. As tensões entre palavra e imagem, escritura e oralidade, tão latentes na obra de Rosa, ganham relevo nas gravuras de Daibert. Nesta pesquisa, buscamos explorar essas relações no sentido de percebê-las em suas confluências. As imagens de Daibert não tem caráter meramente ilustrativo, mas dialogam com a obra rosiana fazendo ecoar outros níveis de leitura e interpretação do texto.
Nota-se, na contemporaneidade, um complexo sistema de interações, em que os meios eletrônico-digitais, associados a formulações visuais, sonoras, espaciais e verbais têm proposto um novo paradigma nas artes e na Literatura. Os diferentes olhares lançados sobre a obra de Guimarães Rosa dão a dimensão desse constante processo de reconstrução da obra literária, que ressurge ora em seu aspecto artesanal, ora no industrial, ora eletrônico-digital. Pretende-se, a partir da análise das relações entre Grande Sertão: Veredas, de Guimarães, e suas transcodificações plásticas, produzidas por Arlindo Daibert, e imagético-interativo-espaciais, por Bia Lessa, promover reflexões sobre a tradução do texto literário para outras Artes, especificamente as artes visuais – imagem e instalações - que se utilizam ou não dos recursos midiáticos ou tecnológicos, evidenciando uma intensa interface entre ambos os campos.