Com base em entrevistas e depoimentos do escritor moçambicano Mia Couto, o texto focaliza aspectos deter- minantes para a relevância de João Guimarães Rosa na formação do sistema literário em países como Angola e Moçambique. Conceitos como tradição, modernidade, oralidade, utopia e política são revistos por Mia Couto, que identifica outros sentidos para os processos de reinvenção linguística que também o ligam a Guimarães Rosa.
O artigo pretende explorar aspectos do duplo presentes em Estória nº 3, conto de Tutaméia, de Guimarães Rosa. Perseguido por um impiedoso bandido, o acovardado protagonista percebe que é projeção do outro, seu duplo. Essa compreensão permite romper com o papel de vítima e transformar-se em assassino do rival. O duplo aparece nos planos narrativo e metalingüístico. Para a leitura, foram necessários conceitos da Psicanálise e da Filosofia de Schopenhauer, numa perspectiva integradora.
O mito e a fantasia, bem como os demais níveis de realidade que transcendem a lógica racionalista, acham-se presentes na obra rosiana de formas as mais variadas. No entanto, em momento algum a perspectiva racionalista é abandonada. O sertanejo de Rosa é um ser dividido entre dois mundos, um lógico-racional e outro mítico-sacral, e o que o autor faz é pôr em xeque a tirania do racionalismo, condenando sua supremacia sobre os demais níveis de realidade. Tomando como base o texto de Grande sertão: veredas, examinaremos neste ensaio como Guimarães Rosa, encarando o racionalismo como uma entre outras possibilidades de apreensão da realidade, relativiza o cunho hegemônico que este adquiriu na tradição ocidental.
O artigo tem como objetivo expor e analisar as principais características que fazem com que a obra rosiana seja considerada uma revolução na prosa nacional, a partir do levantamento das vertentes da fortuna crítica e da reflexão sobre o modo como as noções de aparência e realidade apresentam-se em diferentes textos do escritor.
O objetivo deste ensaio é um estudo do pathos amoroso em Noites do sertão: as novelas Buriti e Dãolalalão, que compõem esse livro, abrigam os registros mais sensuais de toda a ficção de Guimarães Rosa, tratando especificamente do amor e suas modulações, vividas sobretudo no registro da ?transgressão?. Em Buriti tudo se organiza em torno dessa ?Árvore-da-vida? ou, num outro registro, símbolo fálico, que é o Buriti Grande, orquestrando as relações das pessoas cujas terras ele domina sobranceiramente. Em Dãolalalão, há que se estudar em clave de ?estranhamento? a relação de um ex-jagunço e de uma ex- ?militriz?, aferida ao amor arquetípico de Salomão e da Sulamita, o ?Amado? e a ?Amada? do Cântico dos Cânticos bíblico, criptografado ao longo da novela, e abrindo a possibilidade para uma abordagem desse topos caro à ficção rosiana, que é o amor da prostituta.
Partindo da reiteração da figura materna em alguns textos rosianos, ainda que camuflada no significante “etimológico” de Famigerado, a ecoar o nome-da-mãe, o texto se deterá na Bigri, mãe de Riobaldo, em Grande sertão: veredas, relacionada, metonimicamente a Diadorim. Da associação mãe/ desejo se deslizará à associação mãe/pai, ordem subjacente à narrativa do romance. Será, então, examinada a categoria “nome-do-pai”, no sentido lacaniano, “invocação” constante de Riobaldo, errando pelo grande sertão. Essa marca da lei que institui o sujeito societário será também figurada, através de metáforas, metáforas paternas, que condensarão a ausência do pai “real”, representada na bastardia do narrador, o pai imaginário, personificado em Zé Bebelo e o pai simbólico, Joca Ramiro, que sofre o parricídio.
O ensaio busca sublinhar o desejo de Riobaldo e suas relações com o ?fazer poético?, manifesto no gosto pelas cantigas que permeiam Grande sertão e comportam, em ponto menor, o movimento compositivo da obra. Da sedução dos cantares alheios até a fatura de versos próprios, o ex-jagunço vai construindo também liricamente as lembranças pessoais e, à semelhança de seu contar, persegue, nas cantigas, os modos que sustentam o ato de narrar: a mistura , o desenredo e a ?volta do meio prá trás? ? mote recorrente das formas poéticas presentes no romance.
Em Tutaméia, Guimarães Rosa incorpora o cômico de modo estranho, desvinculando-o de seu efeito de causar o riso. Todo o primeiro prefácio, a porta de entrada do livro, é dedicado ao debate acerca da comicidade e seus mecanismos, anunciando procedimentos que identificamos nas estórias, na construção de frases e vocábulos, na arquitetura da própria obra.
Este artigo propõe-se a discorrer sobre as relações entre as atividades de médico e escritor exercidas por Guimarães Rosa de modo a sublinhar o processo de cura pela palavra. Palavra que, quando na forma de canto, assume uma potencialidade apotropaica. Neste sentido, nos debruçaremos sobre um episódio de Campo geral, mais pre- cisamente sobre o efeito de cura que a viola e cantoria de Aristeu operam no estado de espírito de Miguilim. Por compor Corpo de baile, interessa-nos, na investigação deste conto, uma apreciação do pensamento de Platão sobre os estados da alma e a alegria.
O presente artigo pretende discutir três contos de Guimarães Rosa, do livro Primeiras Estórias, em torno da temática da desrazão e suas diferenciações com a loucura. Parte-se de algumas considerações psicanalíticas sobre as relações entre arte e patologia, do ponto de vista da criação, para em seguida focalizar nos contos o modo como as personagens expressam um território não abarcável pela ciência positiva, a que Foucault denominou "Pensamento do Fora". Entre a sanidade domesticada e a loucura, Rosa dá voz à desrazão em personagens de um sertão desconhecido.
Este estudo analisa o conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, à luz do Barroco. Este conto aproxima-se do drama barroco (Trauerspiel) alemão do século XVII, que foi estudado por Walter Benjamin em uma de suas obras mais importantes. As semelhanças entre o conto e o teatro barroco ajudam a entender um pouco mais o conteúdo tão enigmático do texto de Rosa. Tal aproximação tem como ponto central a noção de alegoria, e esclarece a relação do Barroco com a modernidade.
O ensaio reflete sobre a constituição do narrador e das personagens em Grande sertão: veredas a partir da invenção rosiana do “mundo-jagunço”, entre mito e História. Para tanto, concentra-se na formação fictícia do jagunço no livro, cuja base verossímil se localiza ao mesmo tempo nas dificuldades da vida sertaneja e na idealização das possibilidades de reagir a elas. Propõe-se por fim a compreender a lei formal dessa (de)formação – não ser ou ser mito – em contraste com a figura histórica do “homem livre pobre”, e a interpretar a leitura rosiana da modernidade brasileira no sertão.
Este texto pretende detectar no conto Pirlimpsiquice, de Guimarães Rosa, mecanismos subjacentes à narrativa que sustentam a leitura crítica do autor, contrastando vários aspectos de um mundo adulto e de um mundo infantil. Nesse sentido, é possível deduzir que, recusando o modo de ser dos adultos, as crianças agem de uma maneira particular, criando um mundo espontâneo, marcado pela liberdade, alegria e criatividade.
Este trabalho pretende discutir a importância do relacionamento que se estabelece entre homens e cavalos em Grande sertão: veredas, considerando a constituição de uma categoria híbrida: o centauro. Partindo da percepção de que, no contexto da narrativa, os “cavaleiros montados” guardam estreitas relações com o fazer artístico, proponho o diálogo com uma perspectiva transpessoal. Em tal perspectiva, essa figura mitológica remeteria à abertura para outros níveis de realidade e consciência – o que, por sua vez, nos faz compreender a arte que se expressa por Grande sertão: veredas sob uma perspectiva multidimensional e transcendente.
A esmagadora maioria das narrativas rosianas está situada espacialmente no que se poderia chamar, em sentido amplo, de sertão, região brasileira tradicionalmente caracterizada em nosso pensamento social e história literária como interior distante, refratário à modernização, onde está praticamente ausente o poder público e inexistem instituições sociais que garantam às pessoas direitos de cidadãos. Mas o sertão tem suas nuances. Uma delas se apresenta em Grande sertão: veredas, outra, em Corpo de baile, os dois livros de Guimarães Rosa publicados, com meses de diferença, em 1956. As novelas que compõem este último livro se passam, mais exatamente, nos gerais, e revelam um mundo em transformação. As mudanças que aí se verificam indicam que a região está menos distante do mundo urbano que o sertão propriamente dito, onde se situam as aventuras e os amores de Riobaldo e Diadorim. E em processo de aproximação crescente.
A interpretação do sertão como símbolo do inconsciente, e da vereda como símbolo da consciência em Grande Sertão: Veredas foi formulada inicialmente por Paulo Rónai num ensaio da coletânea Encontros com o Brasil, de 1958. Partindo da definição junguiana de inconsciente como o ignoto do mundo interior, o romance nesse prisma se desvela e estrutura como rede sutil de comunicação (e conflito) entre polaridades: vida e morte, Bem e Mal, mundo interior e realidade social, norma interior e norma coletiva, consciente e inconsciente. O itinerário de Riobaldo pode ser lido como uma busca de conciliação entre opostos, e o pacto com o diabo como a opção pelo poder em detrimento do amor. Monólogo do Homem, do Brasil e do Mundo, o debate ético desencadeado pelo protagonista se torna escolha entre a vida e a morte, com repercussões que envolvem tanto o destino individual quanto o coletivo.
Tomando como ponto de partida o personagem Miguilim como homo sacer, na perspectiva de Giorgio Agamben, procura-se analisar, em Campo geral, a duplicidade dessa narrativa que apresenta o texto literário como oscilação entre testemunho/perda/falta/morte e criatividade/auto-referencialidade/vida.
Na sociedade primitiva, é o mito que marca o início e a origem das coisas. É por meio dele que o homem toma consciência de sua condição humana, do estar-no mundo e ser-para-a morte. Pelos tempos afora, o mito transcendeu seu sentido preferencial – pela oralidade, a audição – hoje, atingindo-nos pela mídia, com a releitura de histórias atemporais. Rosa, pela palavra escrita renovada, recria o mito com suas funções originais. Com isso, interfere no mito original de tal modo, que mais que influenciado por ele, o novo conto quebra as cadeias do tempo e influencia o próprio mito. O “diabólico”, em sua dimensão mítica, atravessa a ficção de Guimarães Rosa.
O objetivo deste trabalho está em analisar no conto Vida ensinada a matéria dos paradoxos, pois eles denunciam no âmbito do senso comum legitimado por relações sociais a existência de um outro, silenciado, pelos vazios do consenso. Assim como, buscará apreender o trânsito que se dá entre os espaços do estético e do ético na narrativa rosiana, como dilema inerente à formação por meio dos paradoxos; logo, pensar a educação e, conseqüentemente, a política, traz em sua raiz o refletir sobre a questão de se contemplar a verdade, por mais que ela esteja nas reticências do tempo, nas sobras dos afetos.