Guimarães Rosa e sua obra já fazem parte do cânone literário brasileiro, inclusive por sua
inovação linguística. A crítica literária considera o autor, e consequentemente sua produção
literária, como integrante dos romances ditos regionalistas, justamente pela temática voltada
para o interior do país. Contudo, sabemos que o termo "regionalismo" serve para diminuir o
valor literário de obras que não fazem parte do "centro" do Brasil, dominado pela elite
literária carioca e paulista. Por esse motivo, Grande Sertão: Veredas será retratada a partir de
outro enfoque, resgatando novos elementos que a compõem e a tornam um cânone literário,
sem o rótulo de “regionalista”. Serão utilizadas a teoria do Perspectivismo Ameríndio, do
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que nos ajudará a entender um pouco sobre a cultura
indígena, iluminando o modo de pensar não ocidental; o conceito de performance de Paul
Zumthor, visto que Riobaldo se distingue de outros narradores tradicionais do gênero; outras
fontes como a biografia de Guimarães Rosa e, ainda, alguns textos publicados pelo autor
servirão de base para a proposta aqui presente.
Este ensaio de interpretação do Grande sertão: Veredas trata da forma mesclada do romance de formação com outras modalidades de narrativa, provindas da tradição oral, em consonância com o processo histórico-social que rege a realidade também misturada do sertão rosiano. O grande sertão, múltiplo e labiríntico, origem do mito e da poesia, é visto em seu desdobrarse numa espécie de mar para a existência épica: campo da guerra jagunça e das aventuras de um herói solitário, Riobaldo. Ao abrir-se o livro, esse ex-jagunço surge como o contador de casos que acaba narrando sua vida a um interlocutor da cidade e colocando-lhe questões que nenhum dos dois pode responder. O estudo descreve e tenta apreender assim a mistura peculiar que define a singularidade do livro, intrinsecamente relacionada ao mundo misturado que tanto desconcerta esse narrador, cujo desejo de saber vai além da sabedoria prática do narrador tradicional, pois envolve questões do sentido da experiência individual, típicas do romance, voltado para o espaço urbano do trabalho e da vida burguesa. Na reconstrução da mistura como um todo orgânico, em que o romance parece renascer do interior da poesia do mais fundo do sertão brasileiro, se busca tornar inteligível um verdadeiro processo de esclarecimento. Por ele, Riobaldo, ao repassar o vivido e sua paixão errante por Diadorim, se esquiva da violência mítica do demo que marcou sua existência, expondo-a à luz da razão. Isto faz da travessia desse herói problemático de romance, homem humano, um contínuo aprender a viver ? a real dimensão moderna da obra-prima de Guimarães Rosa. Palavras-chave: literatura; romance; Guimarães Rosa; Grande sertão: Veredas.
Este artigo enfoca um episódio de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, no qual o protagonista Riobaldo, então denominado Urutu-Branco, encontra um leproso e sofre a tentação de matá-lo afim de, como ele próprio afirma, "emendar o defeituoso". Esse episódio é exemplar quanto à tematização da culpa relacionada ao corpo; sua análise possibilita inserir esse tema na questão central de Grande sertão: veredas, a da existência (ou não) de Deus e do Diabo.
Este ensaio busca verificar como Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, um dos mais importantes romances da literatura brasileira, elabora sua narrativa utilizando-se da tradição regional e da moderna.
A proposta é de um estudo das imagens fundamentais de Grande sertão: veredas, à luz das idéias de Giambatista Vico. Com efeito, nesse movimento de nomear que constitui fundamentalmente a poesia, o filósofo napolitano mostra o processo em que se efetiva uma projeção do corpo humano e das "humanas paixões" sobre a paisagem circundante, tendo por base a analogia. Pois bem, é essa sensorialidade do fazer poético que se pode apontar no romance de Guimarães Rosa, em que, do rio ao sertão, aos buritis e a todas as demais "quisquilhas da natureza", é a metáfora que dá "sentimento e paixão" às coisas inanimadas. E toda a orquestração das imagens da natureza obedecerá ao poderoso impulso que atrai Riobaldo a Diadorim.
Bastante conhecida por seu olhar míope (mas poucas vezes em baçado!), a personagem Miguilim, de "Campo geral", apreende o mundo sobretudo através de seu corpo, isto é, da visão das pequenas coisas, de cheiros, toques e sons. Em nossa leitura da novela, examina remos o fluxo dessa experiência sensória em sua relação com o próprio corpo da linguagem rosiana. Nesse caso, será analisada outra característica fundamental de Miguilim: a sua atividade como contador de estórias. Esta, além de criar sentidos para as percepções sensoriais da personagem, vai se constituindo como um modo de enfrentar os reveses de uma infância ma rcada por dúvidas intensas, pelo medo e pela morte.
Odisseu, Dom Quixote e Riobaldo, pela sua natureza de personalidade, são existencialmente condicionados por um texto. Vivem no discurso, sendo o seu universo caracterizado por um determinado enunciado.
A partir do ensaio “O homem dos avessos”, em que Antonio Candido analisa a obra Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, pretendo mostrar o que chamo de dupla navegação do ensaísta no modo de compor a análise. Trata-se de desentranhar do caminho analítico justamente o movimento duplo e ambíguo que Candido surpreende no autor mineiro, qual seja, a oscilação entre os passos enraizados no realismo, herdeiro da vertente crítica dos anos 30, e o voo inventivo e criativo que singulariza escritor e crítico. Selecionando passagens notáveis do ensaio, busco examinar essa dupla flutuação como procedimento crítico analógico à temática estudada por Candido.
Leitura de aspectos da cultura popular, presentes no processo de construção ficcional de Guimarães Rosa, o “contista de contos críticos”, que confessara: "Não preciso inventar contos, eles vêm até mim”. Pela alquimia da palavra em seu estado primitivo, a fusão do real e ficcional com o obsessiva defesa de que "a legítima literatura deve ser vida". A multiplicação do imaginário rural mineiro na narrativa rosiana, especificamente, em contos de Tutaméia e Ave, Palavra. Historia e estória no cotidiano do povo do sertão mineiro. Pelo jogo da memória narrativa popular, a construção da identidade cultural sertaneja e a recriação do mito: "No sertão, o homem é o eu que ainda não encontrou o tu: por isso ali os anjos ou o diabo ainda manuseiam a língua".
As leituras feitas por Antonio Candido da obra de Guimarães Rosa, valiosas tanto pela complexidade de sua visão analítica como pelo seu poder de disseminação de uma linha de entendimento a ser expandida pelos seus discípulos, têm ainda o mérito de deixar entrever, no caso específico da obra
do ficcionista mineiro, a necessidade de uma multiplicidade de interpretações, capazes de melhor dar conta da riqueza e da complexidade dos textos. O trabalho pioneiro do autor de "O homem dos avessos" abriu caminho para leituras de cunho sociológico e metafísico. Em seu tempo, estas foram complementadas por estudos que vincularam a obra de Guimarães Rosa a contextos de modernidade não necessariamente brasileiros. O presente ensaio lança um olhar crítico sobre essas vertentes e reflete sobre possíveis desdobramentos críticos e teóricos no futuro.
Responsável pela arquitetura narrativa de Grande sertão: veredas, o narrador Riobaldo conduz o jogo dialógico de modo a criar um vaivém discursivo que possibilita a detecção pontual de segmentos pertencentes à ordem do discurso e à ordem da história (respectivamente, mundo comentado e mundo narrado, segundo Harald Weinrich). Permeando um e outro mundo, estão as obsessões fundamentais do narrador, das quais destacamos aquela relativa à existência ou não do diabo. As ambiguidades derivadas desse movimento oscilante entre o ser e o não-ser provocam ainda o deslizamento entre o real e o irreal, o dito e o não-dito, o aparente e o oculto, o dado e o suposto. A coerência, no entanto, é reconstituída no alinhavado constante de vários recursos argumentativos que buscam a adesão do interlocutor, cuja voz só é entre ou vida pela voz do narrador. Nesses casos, verificamos a presença do recurso ao argumento de autoridade, seja pela competência, seja pela experiência, seja, ainda, pelo testemunho. É, pois, nesses momentos de interlocução semiexplícita, na instância da enunciação, que se apresentam, com maior nitidez, elementos linguísticos denunciadores das estratégias argumentativas que provocam e incitam o interlocutor/leitor a acompanhar esse "narrar dificultoso” e a finalmente concordar que “O diabo não há!... Existe é homem humano”.
Este ensaio faz parte de uma pesquisa cujo objetivo é o estudo das relações entre verossimilhança e inverossimilhança na obra de Guimarães Rosa. São feitas considerações acerca dos momentos iniciais da recepção da obra junto à crítica profissional, salientando-se principalmente o modo como a inserção do elemento inverossímil, numa narrativa que remete à tradição realista e regionalista, provoca o espanto dos comentaristas. Tal espanto, contudo, comparado com a relativa reserva com que são recebidas outras obras, como a de Clarice Lispector, mencionada no ensaio, indica que a construção do modernismo, para a crítica, implicava, entre os anos 1940 e 1950, o resgate e o aprofundamento de certas tendências regionais exercitadas, no Brasil, pelo romance de 30 nordestino. No encontro entre o realismo regional e a fantasia imaginativa, de caráter inverossímil, se localizaria a originalidade de Guimarães Rosa.
O conto "Famigerado", de Primeiras estórias, permite considerar as pectos da violência na obra de Guimarães Rosa, tal como se configuram no momento em que o jaguncismo, inseparável do mandonismo sertanejo tradicional, sofre mudanças ligadas à urbanização e à modernização, indicadas pelo conjunto do livro. A regra sertaneja da aliança e da vingança, e a inconsistência da lei no sertão, e no Brasil, dão lugar a uma rede de ambivalências condensada no duplo sentido antitético da palavra ?famigerado?. Relações com Sagarana, Grande sertão e Corpo de baile sugerem que a violência fundante, no Brasil, que persiste através das mudanças modernizantes, transparece na obra rosiana como um karma desafiando a sua superação.